3

Quero saber por que o artigo indefinido se escreve "uns" e não "ums"?

Olhando para os quatro artigos indefinidos:

  • Uma - feminino, singular.
  • Um - masculino, singular.
  • Umas - feminino, plural.
  • Uns - masculino, plural.

Vemos que só no masculino plural se escreve com "n".

Fazendo a análise morfemática acho este exemplo interessante pela simplicidade - apesar de tratar-se de um morfema gramatical e não lexical. Podiamos considerar o "s" como morfema do plural. Para o contraste de género o morfema "a" para o feminino e o morfema zero Ø para o masculino. Portanto:

  • Um-a - feminino, singular.
  • Um-Ø - masculino, singular.
  • Um-a-s - feminino, plural.
  • Un-Ø-s - masculino, plural.

A pergunta que fica é se consideramos como base o morfema "um" e alomorfe o "un"? Como se chama ao processo linguístico que leva à mudança de consoante (e que teoricamente cria a alomofre na base derivante)?

bad_coder
  • 2,271
  • 1
  • 11
  • 34
  • Isto tudo é de cabeça, então, talvez me falhe a memória. bad_coder, acho que escrevemos uns por dois motivos: escrevia-se assim há provavelmente mais de um milênio, e porque hoje m só indica anasalamento no final de palavra, ou antes de p e b — antigamente, tudo era n. No caso de um, escrevemos -m pela regra que disse. Escrevemos uma, com m, por uma coincidência, pois, uma antes era /ũa/, que leva a uma, imagino pela proximidade de /ũ/ a /m/, Mas acho que já sabias disto. – Schilive Jul 10 '22 at 16:49
  • /ũ/ que dizes é fonema de "un" não sei se será o mesmo de "ua". Estive a pensar desde que postei e talvez seja flexão nominal em número simples e.g. jovem -> jovens (nesse caso o "m" também troca para "n" com o plural "s"). Mas fica a pergunta como chamamos tecnicamente à mudança na consoante? (Resposta ao teu segundo comentário: Sim acho que o morfema seria o mesmo porque tem o mesmo significado, portanto alomorfes). – bad_coder Jul 10 '22 at 16:49
  • bad_coder, o que me intriga é se é uma mudança de consoante tanto quanto é uma mudança de grafema. Digo, a pronúncia de un-X e um são a mesma (em Portugal, acho que un teria seu n pronunciado), e me parece que a única mudança é a letra. Só por isto, dois morfemas são diferentes? – Schilive Jul 10 '22 at 16:53
  • @Schilive eu não sei fazer transcrições de fonética, mas sei que em Portugal "um" e "uns" é distinto na nazalisação do n, mesmo de disséssemos "ums" a pronúncia do n é diferente. Segunda pergunta: não; se o morfema expressa a mesma coisa é 1 só morfema, se tem grafemas diferentes por uma diferença na pronúnica/fonética são 2 alomorfes de 1 morfema. Neste caso o morfema é "um" que coincide com o numeral, e "un" seria alomorfe por ser menos frequente considerando todas as flexões nominais e derivações em conjunto. – bad_coder Jul 10 '22 at 17:04

3 Answers3

3

É mera convenção ortográfica. Os m e n de um e uns não se realizam como consoantes; simplesmente nasalam o u, resultando na vogal nasal [ũ], a mesma nas duas palavras. Eu sei que isto já gerou desacordo nos comentários acima, mas é o que está de acordo com tudo o que vi sobre fonologia da língua portuguesa.

A Gramática do Português da Gulbenkian (tomo III, 2ª edição, 2021), diz explicitamente que um se pronuncia [ũ] (pp. 2828 e 3243), a mesma vogal que em assunto (p. 3255). E no tomo I diz que de um e de uns, quando não se fazem as contrações dum, duns, se pronunciam (em Portugal) [djũ] e [djũꭍ] ([j] como i em diurno, [ꭍ] como em chá). A Infopédia também indica [ũ] em um, e [ũꭍ] tanto em circunscrição como em circum-escolar.

Portanto as terminações -m do singular e -ns do plural são mera convenção ortográfica. Que aliás resultam da regra geral da nossa ortografia que dita que a vogal nasal, quando não é indicada por til (lã, leões), é indicada por m em fim de palavra e antes de b e p, e por n antes de qualquer outra consoante (incluindo s, quer este indique plural ou não): ele tem, vem; tu tens, vens.

Isto não quer dizer que um ouvido atento e apurado não possa detetar diferenças entre o [ũ] de um e o de uns. A Gramática do Português (p. 3247) diz que na fala normal a coprodução de uma vogal (ou outro som) com sons adjacentes “dá lugar a uma variação significativa relativamente ao que se pode considerar serem as suas características canónicas”. Ou seja, a pronúncia exata do [ũ] em uns vai ser afetada pelo s; e em um, pelo som inicial da palavra seguinte se a houver.

Análise morfológica

Isto baseia-se nos capítulos “54 Introdução à morfologia” e “55 Morfologia do nome e do adjetivo” de Maria Antónia Mota (doravante simplesmente Mota) na Gramática do Português da Gulbenkian (tomo III, pp. 2787-2930). Em primeiro lugar, note-se que a morfologia se baseia na fonologia e não na ortografia. A exposição do assunto recorre à forma ortográfica da palavra só para facilidade de leitura (pp. 2836-7), com explicações adicionais onde necessário.

Na notação de Mota, depreende-se que o radical de um e uns é U/N/ (omitem-se as barras, UN, se não houver perigo de confusão), em que /N/ é um “autossegmento fonológico nasal flutuante”, uma “consoante subespecificada” (pp. 2809 e 2855), que para o que nos interessa, quando se liga a uma vogal à esquerda, nasaliza-a, podendo desencadear ditongos (jovem); quando se liga a vogal à direita, realiza-se como [n] (juvenil). Mota apresenta apenas uma breve discussão da morfologia de um e uns (pp. 2827-8):

O artigo indefinido um, que se reduz a uma vogal nasal, sugere a possibilidade de duas análises: um radical com a forma fonológica /uN/ (cf. Nota 23), paralelamente a atum

Mota não nos mostra diretamente a decomposição de um e uns, mas mostra a de atuns. Nas pp. 2868-9 fica claro que o radical de atum é ATU/N/, o de jejum é JEJU/N/, etc., e na p. 2881 mostra-nos o plural de atuns, dizendo explicitamente que a formação do plural não acarreta nada de especial nesta classe de palavras:

A adjunção de -/S/ a uma base que apresenta o segmento nasal /N/ em final absoluto do radical/tema e uma vogal nasal ([ũ], por exemplo), ou o ditongo [ɐ̃j̃] em realização fonética não desencadeia nenhum fenómeno em particular: enter image description here

Explicando: “ATUN” é um radical nominal (RN), onde “N” é o segmento nasal; “―” indica a inexistência de índice temático (IT, corresponde à vogal temática dos verbos); logo, o tema coincide com o radical, dando-nos o singular atum; e /S/ é o marcador fonológico do plural, cuja realização depende do dialeto e ambiente fonológico.¹

Portanto não há nada de especial na passagem do singular ao plural. Há é entre o masculino e feminino. Não nos deixemos enganar pela ortografia: em uma há realmente a consoante fonética [m], enquanto em um há apenas o segmento nasal /N/. Pelo que consegui compreender, uma possibilidade (Mota refere “duas possibilidades de análise”) é admitirmos dois radicais diferentes: U/N/ para o masculino e UM para o feminino. A preferência de Mota vai no entanto para um radical comum U/N/, em que o segmento nasal /N/ em uma e umas se realiza excecionalmente como [m]. Mais ainda, ela adota para um a seguinte abordagem (em alternativa a /uN/ indicada acima, p. 2828):

um tem a forma fonológica /uNu/, sendo a última vogal o índice temático. /N/ nasaliza a vogal precedente (/N/ não se realiza como consoante nasal ― cf. grafia arcaica do português ũu, hũum, huum). Na forma final, há fusão das duas vogais idênticas em [ũ], um.

A elegância desta abordagem é que do mesmo radical U/N/ resulta um paradigma completo em género e número (um, uns, uma, umas) à semelhança dos adjetivos biformes (e.g. belo, belos, bela, belas, do radical BEL). Adotando a notação de Mota ficaria (o índice temático -o é fonologicamente /u/, Ø indica marcador nulo do singular, e /N/ nasaliza o /u/ anterior no masculino e realiza-se como [m] no feminino): enter image description here

No português medieval não havia nada destas complicações: a representação morfológica seria a mesma, mas o índice temático -o do masculino não se fundia com o radical, e o segmento nasal simplesmente nasalava o u anterior quer no masculino quer no feminino (não se realizava como [m]), daí as formas medievais ũu e ũa, pronunciadas com hiato, [ũ.u] e [ũ.ɐ] (resultante da queda no n fonético do latim). O [m] de uma terá surgido como forma de preencher o hiato em [ũ. ɐ] (basicamente os lábios quase fecham para pronunciar [ũ]; se fecharem completamente, ao reabrirem para pronunciar o [ɐ], produzem [mɐ]; vê esta pergunta que explica isto muito bem, e estoutra sobre quando isso terá acontecido).


Nota: ¹ Na pronúncia padrão de Portugal, e em geral de quem chia o s, o /S/ realiza-se como [ꭍ], de chá, em uns cordeiros, como [ʒ], de já, em uns borregos, e como [z] em uns anhos; para quem não chia o s, a maioria dos brasileiros, realiza-se como [s], de aço, em uns cordeiros e como [z] em uns borregos e uns anhos.

stafusa
  • 12,114
  • 2
  • 18
  • 53
Jacinto
  • 44,937
  • 17
  • 141
  • 257
1

No português existem algumas regras especiais para colocar uma palavra no plural, não é simplesmente adicionar a letra "s" no final de qualquer palavra.

Uma dessas regras especiais diz que quando os substantivos terminam com a letra "m", no plural trocamos o "m" por "ns".

Ex:

  1. Viagem - Viagens
  2. Comum - Comuns
  3. Capim - Capins

Existem outras regras especiais também para os seguintes casos:

  • Substantivos que terminam com "al", "el", "ol" ou "ul".
  • Substantivos que terminam com "il" caso sejam oxítonos.
  • Substantivos que terminam com "il" caso sejam paroxítonos.
  • Substantivos que terminam em "ão".
  • Substantivos que terminam em "s" ou "x" caso sejam paroxítonos.
Vitor
  • 19
  • 2
  • 1
    Sim, depois fui ver e é a simples regra de mudança da consoante m para n quando ocorre o plural. Mas fica o problema formal se consideramos "um" e "un" alomorfes ou simplesmente realizaçõe fonéticas diferentes de um mesmo morfema. Uma outra questão, também formal, é que as gramáticas não dizem explicitamente se os artigos admitem flexão em número ou se devemos considera-los estritamente lexemas diferentes? Sei que é uma formalidade, mas estava à procura de uma referência na literatura em que algum autor tomasse posição sobre estas formalidades. – bad_coder Jul 27 '22 at 20:53
  • 1
    Só para complicar mais um pouco, na análise mofemática os artigos são considerados gramemas. A pergunta era se consideramos os quatro gramemas como tendo um radical comum em que um único lexema coincide com um dos quatro gramemas, e se podemos considerar isto como resultado de flexão nominal após o normal contraste de género (contraste de género esse que alguns autores consideram flexão, outros não). – bad_coder Jul 27 '22 at 21:02
1

Em português e em espanhol, vem M antes de P e B.

E vem N antes de todas as outras consoantes.

M é consoante bilabial e P e B também são consoantes bilabiais.

O motivo é esse.

  • 3
    Obrigado pela resposta, podes incluir umas referências para uma gramática ou outra obra que tenha estas regras explícitas sff? – bad_coder May 24 '23 at 16:11