Peneireiro (falcão)
A meu ver, o peneireiro chama-se assim pelo seu hábito de “permanecer voando parado sobre determinado ponto no solo” (Wikipédia). A isto chama-se peneirar (Michaelis 7), provavelmente pela semelhança com o movimento da peneira ou da pessoa que manuseia a peneira: ao agitar a peneira lateralmente, o corpo da pessoa bamboleia para compensar. Aliás, peneirar significa também ‘bambolear, saracotear’ (Michaelis 4).
Uma coisa que me convence que isto não é mera convergência de palavras de origens diversas, é que a mesma associação existe entre os equivalentes castelhanos. O bicho chama-se cernícalo, que a Real Academia Española (ERA) diz vir do latim “cerniculum ‘criba’", que significa ‘crivo, peneira’. E a técnica de voar parado é cerner (RAE 7), que também significa ‘peneirar (farinha, etc.)’ (RAE 1). O Oxford Spanish Dictionary explica a origem do nome cernícalo precisamente pela “comparação do movimento da ave quando se peneira no ar com o agitar da peneira”; enquanto que este site prefere comparar com “uma pessoa que peneira” (minha tradução em ambos os casos). Na prática, nem fará muito sentido diferenciar os dois movimentos: o movimento do traseiro do peneirador simplesmente contrabalança o movimento da peneira.
Podem ver peneirar um peneireiro aqui e uma padeira aqui.
Peneiras (‘vaidade, presunção’)
Esta aceção de peneiras vem com certeza da expressão ter peneiras nos olhos, que eu não conhecia, mas que vem nalguns dicionários e que significa “[v]er confusamente ou mal, não perceber o que é claro; estar cheio de ilusões” (*Enciclopédia *Brasileira *Mérito, 1967). A aceção ‘vaidade, presunção’ pode vir simplesmente de ‘ter ilusões acerca de si mesmo; pensar que é muito melhor do que realmente é’.
Naturalmente que quem olha através duma peneira não vai ver muito bem. Esta ideia é antiga. Já em 1720, Raphael Bluteau (Vocabulário Portuguez e Latino) regista o adágio “bem cego he quem muito vé por aro de pineira”. Em 1789, António Moraes (Diccionario da Lingua Portugueza regista ver por peneiras, “i. e. obscura, e confusamente”.
Note-se que, tal como no uso atual, já temos aqui peneiras, no plural, possivelmente porque é uma para cada olho. A partir de 1850 passamos a encontrar na imprensa ter peneiras nos olhos, que aparece na Enciclopédia Brasileira Mérito (1967) juntamente com peneiras com basicamente o significado que eu conhecia:
S.f.pl. Bazófia, presunção, febre […] Ter peneiras nos olhos. Ver confusamente ou mal, não perceber o que é claro; estar cheio de ilusões. / Tirar as peneiras de alguém. Elucidar alguém desfazendo-lhe ilusões, fazendo-o ver claro.
Enciclopédia Brasileira Mérito, vol, 15, 1967, mais segundo excerto para completar.
A associação mais clara que eu vi entre ter peneiras nos olhos e peneiras enquanto ‘presunção’ foi num artigo sobre tradições dos Açores:
[…] a um indivíduo todo baboso e presunçoso diz-se ter peneiras ou andar com peneiras nos olhos.
Ferreira Moreno, “Recordando Peneiras”, Portuguese Times, New Bedford, Mass., 11 de junho de 2014, p. 26.
Mas já em meados do século XIX se encontram usos da expressão que prenunciam o significado ‘presunção’, como por exemplo nesta notícia que reproduz algumas coplas da comédia Olho vivo! Companhia de seguros contra as peneiras nos olhos (negrito meu)
Vêde o velho, por falta de tino,
Que aos oitenta a casar ainda vem,
Se depois diz que é pai do menino,
É peneira nos olhos que tem.
A beata que d’homens se espanta,
Que aos devotos sómente quer bem,
Quando julga que passa por santa
Tem peneira nos olhos tambem.
O safado orador que se mata
Sem chamar a attenção de ninguem,
Quando pensa ter lingua de prata
É peneira nos olhos que tem.
“Correspondência do Diario Lisboa, 13-4-1854”, Diario do Rio de Janeiro, 10 de maio de 1854, p. 1.