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Em Portugal diz-se e escreve-se num e numa, e não em um ou em uma, mesmo nos registos mais formais. Mas há pelo menos uma exceção: a expressão dois em um, como por exemplo:

Estive numa loja e comprei este produto que lava e amacia: são dois em um.

No Brasil poderá não ser tão óbvio, para quem está a ver as coisas aqui de Portugal, se dois em um é excecional, dada a tendência para empregar em um/uma em vez de num/numa nos registos formais. Mas numa busca rápida encontrei dois em um neste artigo e nesta canção que também usam num e numa, e a letra da canção é até bem informal. Confirma-se portanto que dois em um é excecional também no Brasil? Ou num registo informal ficaria na frase acima numa loja (...) são dois num?

A pergunta é então o porquê de dois em um? É apenas por uma questão de sonoridade: são dois em um! soa bem, e são dois num! soaria muito brusco? Ou há alguma subtileza gramatical que nos leve a dizer são dois em um! mas figos? Estão ali dois num prato.

Procurei outros casos em que empregasse em um, e consegui encontrar apenas uma frase arrevesada. Imaginem-me ao telefone:

A mesa é muito pesada para a levares sozinha lá para fora. Espera pelos convidados. Em um deles chegando, pede-lhe que te ajude.

Seria gramatical dizer-se num deles chegando? Este um é gramaticalmente o mesmo que o de dois em um? Ou por que razão em um deles chegando soa melhor (se é que concordam comigo) que num deles chegando?

Jacinto
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    Bem, vejo que o "p" de excepcional caiu em pt-PT e isso significa que não era pronunciado. Aqui continua sendo pronunciado. Já em "subtileza" me parece estranho que o "b" seja pronunciado em pt-PT. Alguma explicação? – Centaurus Mar 30 '16 at 02:15
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    @Centaurus o *b* de subtil é pronunciado em Portugal. Encontro-o em autores brasileiros do séc. XIX. Imagino que no Brasil fosse mudo e tenha caído com a reforma de 1943. Mas Fernão Lopes, um dos maiores escritores do sec. XV, antes do português chegar ao Brasil, escrevia sotil. Muitas destas consoantes foram latinismos adotados por escritores renascentistas. – Jacinto Mar 30 '16 at 09:07

2 Answers2

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Acho que é que:

"num/numa" são contrações de "em" com o artigo indefinido "um/uma". O "um" em "dois em um" é um objeto definido, um número específico, não é um artigo.

Jacinto
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roberto tomás
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    Fiz umas correçõezitas na tua resposta. Mas eu não tenha a certeza que a tua resposta esteja correta, por isso não votei. Nós dizemos coisas como «achas que precisamos de dois caixotes, ou caberá tudo num?». O um deste num também não é um número específico? – Jacinto Mar 30 '16 at 09:38
  • obrigado pela ajuda. «achas que precisamos de dois caixotes, ou caberá tudo num?» pode ser artigo o número, me pareces. em inglês tem dois variantes de artigo indefinitivo como "um/uma": "one" e "a/an". Ambos são iguais como artigo, ainda "one" tem um aspeito numérico. em priberam, "num" só tem o significado que eu descrevi. embora não é um recurso definitivo. – roberto tomás Mar 30 '16 at 11:33
  • Mas o Aulete já indica também num = em um com um numeral. – Jacinto Mar 30 '16 at 11:39
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Consultando a lista de ocorrências de "em" [lema="um"] no CETEMPúblico, salta à vista que, na maioria das ocorrências, um tem função de quantificador numeral. Por exemplo, "em" "um" "milhão" ocorre 47 vezes, contra apenas 8 de "num" "milhão".

Por vezes, a escolha entre em um e num pode ter influência no significado:

Em um mês, o preço do crude subiu 20%.

Com num poderíamos interpretar a frase como num certo mês, ...

Estando esta análise correta, seria já por isso de esperar uma preferência por dois em um, dado que o constraste numérico reforça o valor de cardinalidade. Por outro lado, se atenuarmos a leitura de cardinalidade, já podemos usar a contração: vou converter dois objetos em um vs. vou converter dois objetos num único (objeto). Também poderá estar em jogo um carácter fixo da expressão X em um.

Recuando um pouco, é preciso dizer que a escolha entre as duas formas é largamente arbitrária. No Brasil, em um é longe preferido à contração na escrita (analogamente, raramente se usa dum na escrita em Portugal). E eu lembro-me de ter um professor de geografia que nunca usava a contração (não me lembro de onde era), por isso é possível que também haja alguma variação regional. Mesmo no CETEMPúblico, encontram-se algumas (raras) passagens onde estamos perante um artigo indefinido (há casos ainda mais óbvios, com uns/umas, mas esta é mais interessante):

par=ext2545-nd-91b-1: Esperava que me escrevesses de todos os lugares por onde passasses; que as tuas cartas seriam mui extensas; que alimentarias a minha paixão com as esperanças de ainda ver-te; que uma inteira confiança na tua fidelidade me daria alguma espécie de repouso, e que ficaria assim em um estado assaz suportável, sem extrema dor.

Outro caso em que tipicamente não se faz a contração é quando o segundo elemento faz parte de um sujeito de uma oração infinitiva (independentemente de qual é a segunda partícula):

par=ext204613-clt-92b-1: A novidade introduzida por Ice-T está em ele ser o primeiro artista negro procedente do rap a operar a transição para o heavy metal.

Quanto a em + <gerúndio>, creio que é análogo a este caso. Mas essa construção (exprimindo tempo ou contingência) é arcaizante em Portugal; no Brasil a fobia de usar a contração complica a análise. Em todo o caso, procurei por "nele" [temcagr="GER"] no Corpus Brasileiro do Projeto AC/DC e nenhum dos resultados incluía a construção. Com "em" "ele", temos esta passagem:

Porém, reforçamos o fato de em ele tendo casa, e pessoas que de alguma forma o queriam e com os encaminhamentos já dados, ele estaria a desperdiçar e também de alguma forma tirar o lugar em instituições, de outros meninos que não possuíam suas condições.

Um exemplo em que a contração em + ono não é feita:

O que a reforma precisa é de criar as condições necessárias para que, em o País voltando a crescer, se ampliem também as ofertas de trabalho.

Artefacto
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  • Também me parece que ser o ele, um, etc. parte do sujeito obsta a contração. Não sei é se isso é tendência ou se a gramática normativa diz algo acerca disso. No meu exemplo eu não diria num deles chegando; não sei se não era capaz de dizer a novidade está nele ser. – Jacinto Apr 01 '16 at 19:55
  • @Jacinto É uma regra, sim, vê por exemplo aqui. Com a preposição de, contudo, tende mais a não ser observada. Vê também este artigo. – Artefacto Apr 01 '16 at 20:06
  • Ahh, mas o segundo artigo diz que a contração de de com artigo ou pronome tem pergaminhos mesmo quando o artigo ou pronome fazem parte do sujeito. Mas a justificação, sendo fonética, parece-me não se aplicar ao em. – Jacinto Apr 01 '16 at 20:50
  • @Jacinto Sim, não me parece que a lógica seja completamente transponível para em, lógica essa, de resto, já de si bastante discutível. Muita gente diz eu acabei do ver (di-u também possível), mas nunca ninguém se lembraria de escrever dessa forma. A fonética não é completamente determinante. O que ele tem do seu lado são os tais pergaminhos. – Artefacto Apr 01 '16 at 21:01