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Vejo com frequência os falantes não nativos terem dificuldades com a posição de «sempre». Nomeadamente, em português europeu, a seguinte frase não é possível (sempre tem de estar em posição pós-verbal):

*Ele sempre se recusava a falar do assunto.

Mas estas são-no, embora com significados diferentes:

Ele recusou-se sempre a falar do assunto.
Ele sempre se recusou a falar do assunto.

Em português do Brasil, as regras parecem ser diferentes.

A pergunta é, então, quais são as posições possíveis de «sempre» nas duas variedades, quais são as diferenças de significado e qual a lógica por trás das regras?

Artefacto
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    I can't believe my eyes. The first sentence looks completely legitimate to me. habitual past tense verbs should be modifiable. The second sentence also looks great. The third, though, has "always" modifying a preterit past —you'd think that would never be correct: "always" implies a habit or custom and pretty much directly contradicts a specific instance of anything. – roberto tomás Apr 02 '16 at 11:43

2 Answers2

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Precisamos de distinguir os dois tipos de significados de sempre. Há os significados temporais:

Continuamente: Tenho sempre fruta em casa;
Regularmente: Ele levanta-se sempre às 7 da manhã;
Em todas as ocasiões: Ele recusava-se sempre a discutir o assunto;
Repetidamente: Ele está sempre a interromper-me.

Mas depois há os significados alternativos, que são muito comuns em Portugal; no Brasil são igualmente comuns na literatura do século XIX, mas parecem ter rareado no XX. Nestes sentidos, sempre vem sempre antes do verbo:

Apesar de dúvidas; contra as expetativas; confirma-se que; afinal:
Ele disse que não vinha ao jantar, mas sempre veio.
Disseste que talvez viesses connosco à praia; sempre vens?

Realmente: sempre és muito guloso!

Apesar de tudo o resto; pelo menos; afinal:
Aceitei o estágio não remunerado; sempre ganho alguma experiência.
Fui com eles à praia; sempre foi melhor que ficar sozinho em casa.

Sempre querer ver, que não encontrei em dicionário nenhum. Tipicamente irónico, exprimindo ceticismo, pessimismo:
Sempre quero ver onde é que vais comprar uma gravata a uma hora destas.
Ele disse que fazia o jantar; sempre quero ver o que é que dali sai.

No sentido temporal, é verdade que frases do tipo «ele sempre se recusava a discutir o assunto» soam estranhas a ouvidos portugueses, mas parecem ser comuns no Brasil. Há no entanto certo tipo de construções em que o sempre temporal vem, mesmo em Portugal, sem problemas antes do verbo, nomeadamente quando sempre vem adverbiado por nem ou quase, ou em orações iniciados por pronomes relativos, como, porque, etc.:

Ele nem sempre se recusava a discutir o assunto

Ele quase sempre se recusava a discutir o assunto.

Como ele sempre se recusava a discutir o assunto, nós nem sequer tentávamos.

Não tocávamos no assunto, porque ele sempre se recusava a discuti-lo.

Era esse o assunto que ele sempre se recusava a discutir.

Era esse o assunto cujos pormenores ele sempre recusava discutir.

Não era a Joana, mas sim ele quem sempre se recusava a discutir o assunto.

Exceto no primeiro exemplo, pospor o sempre não alteraria o significado. Já o primeiro exemplo me parece diferente de «ele nem se recusava sempre a discutir os assunto».

Andei a ver neste Corpus do Português o padrão do uso de sempre. No presente e pretérito imperfeito do indicativo no Brasil do século XIX e em Portugal até hoje, o sempre é anteposto ao verbo praticamente só neste tipo construções ou quando tem um dos significados alternativos. Já no Brasil do século XX aparece anteposto aparentemente em todo o tipo de construções com sentido temporal, ao passo que os significados alternativos praticamente desapareceram. No pretérito perfeito, quer no Brasil quer em Portugal, o sempre temporal já é liberalmente usado antes do verbo, e os significados alternativos raramente aparecem. Esta raridade dos significados alternativos no pretérito perfeito em Portugal é curiosa: creio que os meus dois exemplos acima com sempre + pretérito perfeito são perfeitamente típicos em Portugal.

É verdade, como se pode ver na tabela abaixo) que há no Brasil relativamente a Portugal uma maior tendência a antepor o sempre ao verbo (o rácio (sempre + verbo)/(verbo + sempre) é sempre maior no Brasil). Predomina no entanto, nos dois países, o sempre posposto no presente e pretérito imperfeito do indicativo; enquanto no pretérito perfeito predomina o sempre anteposto.

                         Presente            Imperfeito           Perfeito
                    Portugal  Brasil     Portugal  Brasil     Portugal Brasil
(1) Sempre + verbo    473      600         302      305         699     963
(2) Verbo + sempre   1317     1018         680      401         458     164
(1)/(2)              0,36     0,59        0,44     0,76         1,5     5,9
Ocorrências nos 100 primeiros verbos no Corpus do Português. 

Resta dizer que dizer que «ele sempre se recusava a falar do assunto» é impossível no português europeu é uma força de expressão. A frase soa-me estranha, mas conseguem-se encontrar em Portugal frases do mesmo tipo (isto é, que me parecem igualmente um pouco estranhas; ênfase minha):

Corina […] tinha contínuas entrevistas com damas responsáveis que a requisitavam para os saraus de beneficência, revistinhas cantaroladas com guarda-roupa de papel e quadros-vivos ― o sonho de Jacob, a bela adormecida no bosque ― e em que Corina sempre era a princesa de gola à Médicis sorrindo sobre um leito de tapete de mesa de jantar. (Agustina Bessa Luís, Os Incuráveis, 1982.)

Assim (..) dum' auganal', como a gente cá chama. Aquilo é por baixo; e a gente sempre tinha um espiche lá (..) no fundo daquele pote, quando ia subindo (..).. Tinha água..(Corpus de dialetos portugueses CordialSIN PVC12)

Jacinto
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  • Está bem visto que nos significados alternativos sempre vem preposto (incl. no imperfeito ah, então sempre gostavas dela!) e que nem leva consigo sempre para trás do verbo. Mas o resto já não consigo acompanhar. A posição canónica com quase é depois do verbo (CETEMPúblico: 4 contra 20) e as restantes frases parecem-me ser ou mais incomuns ou mesmo marginais. Parece-me ainda que há uma diferença entre as duas posições que não exploras: sempre ouvi dizer parece-me diferente de ouvi sempre dizer e (continua) – Artefacto Apr 03 '16 at 23:54
  • (provavelmente relacionado) por que alguns tempos (imperfeito, perfeito composto) não aceitam tão bem a preposição (possivelmente a questão do tempo é apenas um sintoma de qualquer outro aspeto) – Artefacto Apr 03 '16 at 23:59
  • Interessante também que os 4 casos de "quase" "sempre" no CETEMPúblico são todos introduzidos por "que" (uma completiva e três relativas). Isso parece de facto dar alguma aceitabilidade. – Artefacto Apr 04 '16 at 00:10
  • Quanto ao exemplo "Ele disse que não vinha ao jantar, mas sempre veio.", existe em pt-PT a forma negativa, muito comum na língua inglesa ? ("He said he would come for dinner but he never showed up") – Centaurus Apr 04 '16 at 00:48
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    @Artefacto No Corpus também é em Portugal 23 imperfeito + quase sempre contra 7 imperfeito + quase sempre. Mas o que eu digo em relação a esta construção e às restantes é que não me soam estranhas, e o sempre preposto ao imperfeito e presente, para além dos significados alternativos, ocorre praticamente só em construções desse tipo. Depois há muita coisa que eu não abordo porque não cheguei a conclusão nenhuma. – Jacinto Apr 04 '16 at 08:22
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    @Centaurus Aí dirias «disse que vinha, mas não veio», «mas afinal não veio», «mas não chegou a vir», «mas acabou por não vir». – Jacinto Apr 04 '16 at 08:30
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    Eles fazem uma distinção entre quantificação temporal universal (pré-verbal) e correlação de eventos (pós-verbal, exigindo uma sucessão de eventos). Quererão com isto dizer que comparando Arafat sempre defendeu um Estado multiétnico com Arafat defendeu sempre um Estado multiétnico, a diferença seria a mesma que entre não houve período em que Arafat não defendesse a multietnicidade e não houve ocasião em que Araf não defendesse a multietnicidade? Parece-me plausível, mas não tenho a certeza. – Artefacto Apr 04 '16 at 17:52
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    @Artefacto Também me parece plausível. Fiquei com a sensação de tender a encontrar a anteposição mais em qualidades permanentes (sempre foi muito curioso) e a posposição mais quando há ações implícitas (foi sempre difícil prever o passo seguinte do dr. Savimbi). Mas parece-me apenas um tendência: também encontro foi sempre enfermiça e triste. Mas é verdade que o sempre ganha força ao ser anteposto. Estou a pensar porque é que não é anteposto no presente e imperfeito. Será por não ser necessário? Estes tempos não estão limitados no tempo: ele é/era curioso significa que é/era sempre. – Jacinto Apr 04 '16 at 18:51
  • @Artefacto Mas foi curioso pode ter sido apenas brevemente; logo o sempre faz diferença. – Jacinto Apr 04 '16 at 18:52
  • @Jacinto É verdade, como eles próprios dizem o sempre posposto pode redundar na mesma leitura que o preposto se não foi for possível uma leitura de correlação e dependendo doutros fatores. Mas estou mais convencido de que a preposição tem escopo sobre o tempo e uma leitura de quantificação universal temporal. Repara na estranheza de «naquela altura ele sempre foi curioso». Isso poderia explicar a grande parte do imperfeito; este geralmente é usado juntamente com enquadramentos temporais incompatíveis («nessa altura, sempre se recusava...», como no corpo da pergunta). – Artefacto Apr 04 '16 at 21:45
  • Ou porque não há problema com o futuro simples («Sempre te amarei»), mas o há com «sempre te vou amar», que é prospetivo. Ou porque não há problema com o MQM («até aí, sempre se recusara»); com o perfeito composto («sempre se tem recusado») tenho algumas dúvidas, não me parece muito natural estendê-lo indefinidamente para o passado (como em «ele tem-se recusado desde sempre»); se pospusermos a leitura iterativa é completamente compatível com uma «sucessão de eventos». – Artefacto Apr 04 '16 at 21:57
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Em ptBR o advérbio "sempre" não parece mudar o significado da frase quando posicionado nas duas formas indicadas na pergunta.

  • "Ele sempre desejou ter um BMW" ou "Ele desejou sempre ter um BMW" - A segunda frase soa menos usual que a primeira mas tem o mesmo significado.

  • "Ela sempre se ofereceu para ajudar" ou "Ela se ofereceu sempre para ajudar" - Da mesma forma, não percebo nenhuma diferença semântica entre as duas frases.

Diferentes de "Ela se ofereceu para ajudar sempre.", em que o significado pode ser "sempre que precisassem", "sempre que necessário", etc.

ANeves
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Centaurus
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    Pois, eu vejo frequenemente «sempre» em posição pré-verbal em textos brasileiros onde em Portugal se usaria em posição pós-verbal. Em Portugal, «ele desejou sempre ter um BMW» é a frase «normal», «sempre desejou» é uma posição mais marcada. Faria sentido por exemplo em: - Parece que ele agora quer um BMW. - Ele sempre quis ter um BMW. De qualquer forma, respondes apenas a parte da pergunta. E com os outros tempos verbais? – Artefacto Apr 02 '16 at 12:01
  • @Artefacto Embora eu sempre recorra a norma culta ao responder, minhas respostas não seguem a gramática prescriptivista a risca. Respondo como alguém que é um falante nativo há muitas décadas e sempre me refiro à língua viva, conforme ouço e leio habitualmente em jornais e revistas. Em pt-BR "ela sempre procurou", "ela procurou sempre", "ela sempre procurava", "ela procurava sempre", etc, a diferença é apenas o tempo verbal. O significado muda porque o tempo verbal mudou, mas a posição pré ou pós verbo, de um modo geral, não altera o significado. – Centaurus Apr 02 '16 at 16:33
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    Confirmo o que o Centaurus diz. Quase sempre em pt-BR, tanto antes quanto depois do verbo, o significado continua o mesmo. Porém, em alguns casos, pode ser interpretado de duas maneiras, como por exemplo o exemplo da BMW. "Ele desejou sempre ter um BMW", também pode ser entendido que ele desejou ter uma BMW para o resto da vida dele (para sempre). – Yuuza Apr 04 '16 at 16:36
  • @BrunoLopes É verdade, não havia pensado nessa possibilidade – Centaurus Apr 04 '16 at 22:59
  • @ANeves soa melhor assim. – Centaurus Jun 13 '17 at 16:06