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Estes tempos estive pensando sobre o verbo mudar. Em seu uso mais comum significa substituir, trocar ou alterar. No entanto aos ser usado na conjugação reflexiva (eu me mudei) seu sentido (pelo menos em PT-BR) é o de mudar de habitação ou residência.

Achei este fato curioso e gostaria de saber de outros verbos que possuem o mesmo comportamento, no entanto não sei se há um nome para este fenômeno. O que me ocorreu primeiro foi buscar por verbos pronominais ou reflexivos, mas assim eu estaria buscando apenas verbos que exigem ou podem ser acompanhados por pronomes pessoais oblíquos.

  • Existe um termo para classificar estes verbos que mudam de sentido ao serem acompanhados por um pronome pessoal oblíquo?
  • Como posso achar outros verbos deste tipo?
ANeves
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gmauch
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    Interessante pergunta. Em pt_PT mudar-se também toma o mesmo significado. Não sei porquê o primeiro exemplo de que me lembrei foi largar - que normalmente significa deixar, ceder, libertar, soltar, no entanto, mas largar-se ou abrir-se pode informalmente ou em calão significar peidar, bufar ou traquejar hahah – Duarte Farrajota Ramos Jul 29 '16 at 23:40
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    No teu exemplo, o significado muda apenas na conjugação reflexa, não simplesmente por juntares um pronome pessoal oblíquo. Em qualquer verbo transitivo direto, o objeto direto pode em princípio ser substituído por pronome pessoal oblíquo sem alterar o significado: «se ainda não mudaste o óleo ao carro, temos de o mudar». Portanto referes-te a pronomes pessoais oblíquos em geral, ou apenas a conjugação reflexa? – Jacinto Jul 31 '16 at 13:17
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    @Jacinto, realmente me refiro ao seu uso na conjugação reflexa. Inclusive a 1a versão do titulo da questão era "verbos que mudam de sentido ao serem usados reflexivamente", mas achei que não ficou claro. Vou editar a questão e corrigi-la. – gmauch Jul 31 '16 at 13:52

3 Answers3

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Chamam-se verbos frasais aqueles que mudam de significado quando acompanhados de pronomes pessoais oblíquos, preposições e palavras de outras classes gramaticais. Da Wikipedia:

O fenômeno dos "phrasal verbs" também ocorre na língua portuguesa. Contudo, não é muito comum. É mais encontrado no português coloquial falado no Brasil . Exemplos: "Não quero mais saber de você! Cai fora!" (cair fora = sair, retirar-se); "Depois de ter sido xingada, ela partiu para cima dele com uma faca." (partir para cima = atacar algo ou alguém).

Exemplos com pronomes pessoais oblíquos

  • Tocar: Pôr a mão ou o dedo em. (ex. Eu toquei o vaso)
  • Tocar-se: perceber, dar por si. (ex. Entrei em casa e nem me toquei que você estava no sofá)


  • Conter: Ser constituído de algo. (ex. Este alimento contém glúten.)
  • Conter-se: Impedir que alguém aja. (ex. Quando a vi, não me contive e a abracei.)

Outros exemplos

Além destes exemplos, acredito que o mais notório seja o verbo dar. Segundo o dicionário Priberam (ênfase minha):

  • sem preposição: Ceder gratuitamente (ex.: dar um cigarro).
  • Dar + per: Tomar conhecimento na altura em que acontece (ex.: a vítima nem deu pelo furto).
  • Dar + com: Achar, descobrir, encontrar (ex.: deu com a fotografia escondida no livro).
  • Dar + para: Conseguir ou ser possível (ex.: sei que prometemos, mas não deu para ir). [Verbo impessoal]

Editado conforme comentários

Bell App Lab
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  • A pergunta trata-se só da diferença entre duas formas específicas de um verbo: a forma pronominal e a forma não pronominal. Por exemplo, ir (eu vou) e ir-se (eu vou-me) tem significados bastante diferentes, mas não há nenhuma ideia de reflexividade (ir não é transitivo, pelo que não teria sentido) – user0721090601 Aug 01 '16 at 08:16
  • Sim. Mas a pergunta é: "existe um termo para verbos que mudam de significado ao serem acompanhados de um pronome pessoal oblíquo?" A resposta é: sim, chamam-se verbos frasais, que mudam de significado não só com pronomes pessoais oblíquos mas também com palavras de outras classes gramaticais. – Bell App Lab Aug 01 '16 at 09:39
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    @BellAppLab sendo «chamam-se verbos frasais» a resposta que queres dar, acho que a tua resposta ficaria muito mais sólida com um par de exemplos de «verbos frasais» com pronomes oblíquos :) , em vez de um exemplo sem pronomes oblíquos. – ANeves Aug 01 '16 at 17:24
  • Editado confirme sugestões. – Bell App Lab Aug 01 '16 at 18:35
  • Nalguns dos teus exemplos o clítico pode ser substituído por um nome sem alterar o significado do verbo: eu deitei-me (para dormir)/eu deitei o bebé; não me contive/não contive o Pedro, e ele começou a disparatar em frente de toda a gente. Portanto o clítico não altera o significado nestes casos. – Jacinto Aug 04 '16 at 13:04
  • @Jacinto Precisamente. Acho que justamente por isso não se fala a respeito dos verbos frasais no português. Eles são mais plásticos, ao que me parece. Com exceção, na minha opinião, do caso "dar+para", em que não há essa superposição de sentidos mediante o acréscimo da preposição. – Bell App Lab Aug 04 '16 at 14:33
  • Não creio que verbos frasais sejam relevantes nesta pergunta. A questão não é verbos que mudam de sentido ao mudar a preposição. Pede-se é verbos que com clítico ´reflexo' significam uma coisa, e em que não é possível substituir esse clítico 'reflexo' por um 'não reflexo' ou por um nome sem alterar o significado. Isto independentemente de o verbo pedir uma proposição em particular. Passar-se está nesta categoria; passar em eu passo-me não tem o mesmo significado que em eu passo-te ou em eu passo a ponte; mas deitar tem o mesmo sentido em eu deito-me e em eu deito o bebé. – Jacinto Aug 04 '16 at 15:33
  • @Jacinto Nem só de preposições são feitos verbos frasais. E sim, "eu me deitei com a Joana" tem um sentido completamente diferente de "eu me deitei". E "eu me deitei" tem sentido diferente de "eu deitei o bebê". "Deitar-se" é também o ato de ir dormir. Meramente "deitar o bebê" não implica que o mesmo vá dormir. – Bell App Lab Aug 04 '16 at 15:43
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Se o que queres é uma lista, podes ver o anexo da tese de doutoramento de Fernanda Rosário de Mello, intitulada “Acabou-se o que era doce, quem comeu se regalou-se”: uma análise do clítico se em João Pessoa na interface Sociolinguística/Gramaticalização”. No final, num anexo, há uma tabela de verbos com uma coluna ≠ SGDO:

A coluna [...] diz respeito a um critério semântico: a diferença de significado quando o verbo se faz pronominalizado. Como indicam Cunha e Cintra (1985), a instauração de um sentido distinto daquele dado pela forma não-pronominalizada é um forte indício de que estamos diante de um se que é inerente.

Artefacto
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Não encontrei nenhum nome para esse tipo de verbos. A Gramática do Português da Gulbenkian tem trinta páginas de escrita cerrada e miudinha (1188-1218) sobre tipologia só dos verbos plenos, mas a classificação baseia-se apenas nos argumentos que o verbo seleciona — se tem ou não sujeito, complemento direto, etc. — e nas propriedades dos argumentos.

Mas não é difícil encontrar verbos com variação de significado associada ao pronome do paradigma reflexo. Encontrei dois tipos de variação: uma muito acentuada, em que os dois sentidos parecem não ter nada em comum; e verbos da chamada alternância causativa-incoativa, em que a diferença de significado é mais subtil. O que é comum a todos os casos é que o pronome ‘reflexo’ é na verdade inerente.

Comecemos com alguns exemplos das grandes diferenças. Algumas das aceções poderão ser desconhecidas no Brasil, por isso incluo uma curta explicação:

Dei bem com o João (‘encontrei, descobri com facilidade’, Priberam 28)
Dei-me bem com o João (‘relacionou-se, conviveu’, Priberam 49, 50)

A Maria passou aqui com o namorado (Priberam, 15, 19, 23)
A Maria passou-se aqui com o namorado (‘perdeu completamente a calma’, Priberam 31)

Vieram os dois juntos
Vieram-se os dois juntos (pois, coiso e tal, Priberam 22)

Estes exemplos têm a gracinha de o clítico ser a única diferença entre as frases. Se não formos tão exigente, encontramos mais exemplos:

Ela trata da criança (Priberam 6, 9)
Temos de falar: trata-se da criança (‘o assunto é a criança’, Priberam 20)

Ele saiu com uma moça engraçada (‘foi ao cinema’ ou coisa assim, Priberam 17)
Ele saiu-se com uma engraçada (‘disse inesperadamente’, Priberam 20)

Esse circo passou em Coimbra [‘esteve’, Priberam 23)
Esse circo passou-se em Coimbra [‘essa cena pouco edificante, etc. aconteceu’ Priberam 29)

Em todos estes exemplos, os verbos, tal como os verbos da tabela indicada na resposta do Artefacto, são usados intransitivamente; e o clítico é inerente. Ou seja o verbo não exprime uma ação que o sujeito exerça sobre si mesmo, como em eu visto-me, ele veste-se. Diferentemente o clítico faz parte do verbo, como em arrepender-se. (Isso confirma-se pela impossibilidade de acrescentar um a mim mesmo, a si mesmo, etc. ao verbo.) Note-se no entanto que clítico inerente não implica necessariamente que o mesmo verbo sem clítico tenha significado diferente. Por exemplo, rir e rir-se significam o mesmo.

Talvez não seja de surpreender que grandes diferenças de significado surjam com a adição do clítico apenas em verbos com clítico inerente. Se o clítico for verdadeiramente reflexo, em princípio o verbo admite complemento direto ‘normal’, mais ou menos com o mesmo significado. Na verdade é isso que acontece com mudar, o exemplo da pergunta. Imaginem que uma empresa tem residências próprias para empregados que vêm do estrangeiro:

Entre colegas no departamento de alojamento: Vamos mudar o Silva para a Av. De Roma

O Silva aos amigos: Vou ter de me mudar para a Av. de Roma

E se um verbo admite complemento direto, tipicamente será possível conjugá-lo reflexamente, mesmo quando seja materialmente impossível a sujeito exercer a ação sobre si mesmo:

É materialmente impossível um líquido beber-se a si mesmo.

Temos que mudar o óleo do carro, porque ele não se muda sozinho.


Verbos da Alternância Causativa-Incoativa

Nestes verbos a diferença de significado é bem mais subtil. Vejamos um exemplo:

(a) A Maria assustou o João = a Maria causou um susto ao João
(b) A Maria assustou-se ≠ a Maria causou um susto a si mesma

Em (b) entendemos normalmente que alguma coisa ou alguém assustou a Maria. Se quiséssemos dizer que a Maria tinha, de algum modo, causado um susto a si mesma, teríamos que acrescentar um a si mesma para evitar a interpretação normal. Ou seja, assustar em (a) significa ‘causar um susto’; em (b) significa ‘sofrer um susto’. Em bom vernáculo diríamos (a) pregar um susto e (b) apanhar um susto, mas causar e sofrer são mais gerais e aplicam-se a qualquer verbo desta categoria. Estes verbos têm duas versões, como se vê melhor no seguinte exemplo:

Transitivo, causativo: o estrondo assustou a Maria.
Intransitivo, incoativo: a Maria assustou-se (com o estrondo).

Diz-nos a Gramática do Português (p. 1210) que «a grande maioria» do verbos da alternância causativa-incoativa têm pronome do paradigma reflexo na sua versão intransitiva. Nem todos têm: o sol aqueceu a casa; a casa aqueceu. Apresento os verbos com pronome ‘reflexo’ de entre a lista da Gramática do Português:

Verbos relativos a alterações psicológicas: aborrecer (ele aborreceu-me; eu aborreci-me), afligir, assustar, comover, emocionar, enfurecer, envergonhar, escandalizar, espantar, inquietar, irritar, maçar, preocupar, ralar.

Verbos relativos a alterações físicas: abrir (o vento abriu a porta; a porta abriu-se), afundar, agoniar, curar, encharcar, encher, fechar, girar, magoar, mover, queimar.

Jacinto
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