O plural de um nome é uma convenção. E o facto objetivo é que estão em uso dois plurais para os nomes dos povos indígenas do Brasil: um plural regular (o guarani versus os guaranis) e um plural irregular sem s que coincide com o singular, ou seja nome de dois números (o/os guarani). A tabela abaixo mostra que nuns casos predomina o plural regular; noutros o irregular (mostro a contagem inicial do Google, seguida da contagem na ‘ultima’ página, mais baixa, que exclui “resultados similares”).
Resultados do Google
Google geral Guarani Pataxó Caeté Tupi Ianomâmi
Os + plural sem s 81.900/240 16.300/214 1.010/115 15.100/271 1.710/222
Os + plural regular 46.400/332 10.700/294 4.430/271 42.400/271 8.220/283
Google Books Guarani Pataxó Caeté Tupi Ianomâmi
Os + plural sem s 2.830/82 33/33 18/18 1.640/66 12/12
Os + plural regular 3.020/74 35/35 43/43 2.870/65 38/38
Os dicionários que consultei—Houaiss (Lisboa, 2003), dicionário da Academia das Ciências de Lisboa (Lisboa, 2001), Aulete, Michaelis, Priberam e Infopédia—registam para todos os nomes que vi apenas os plurais regulares. Também é só plurais regulares que encontro na Academia Brasileira de Letras, Portal da Língua Portuguesa e Vocabulário Ortográfico Comum da CPLP (neste último é preciso clicar em “flexões” para ver os plurais).
O plural regular não carece de qualquer justificação: limita-se a seguir a tradição da nossa língua. Como escreve a Folha de São Paulo no seu Manual de Redação (entrada indígena/índio):
Na Folha, nomes de nações, povos e tribos indígenas do Brasil são flexionados como os de qualquer etnia, povo ou nação: os tupis, os ianomâmis, os bantos, os apaches, os franceses, os mexicanos, os lapões.
Ao que consegui apurar, o plural sem s vem da Convenção para a Grafia dos Nomes Tribais de 1953 da Associação Brasileira de Antropologia (texto completo acessível mediante registo; resumo). O objetivo da Convenção era usar em trabalhos científicos nomes tão fiéis quanto possível ao original na língua indígena. Daí o uso de normas gráficas diferentes da grafia oficial portuguesa de modo a representar sem ambiguidade uma boa aproximação à pronúncia indígena (usando por exemplo o y para representar a semiconsoante que nós grafamos com i em hiato), e usar o mesmo nome para o singular e plural porque o nome na língua original poderia não ter plural ou não formar plural com s.
Mas agora há aqui duas coisas importantes. A Associação Brasileira de Antropologia pretendia apenas facilitar a comunicação no trabalho científico; nunca sugeriu que as suas normas fossem adotadas na grafia oficial. E mesmo para o trabalho científico, o artigo 21 prevê a grafia e flexões portuguesas para nomes de origem portuguesa ou “morficamente aportuguesados” (texto completo). Isto valeria, por exemplo, para guarani e tupi, que são formas aportuguesadas incorporadas na língua há séculos.
Esta posição parece-me absolutamente razoável. Não compete a um associação profissional propor para uso geral uma grafia e gramática alternativas. Mas obviamente o plural sem s saltou para usos não científicos, e independentemente de a grafia ter ou não sido adaptada às normas do português.
De algumas coisas que encontrei, como este Povos Indígenas e Tolerância: Construindo Práticas de Respeito e Solidariedade editado por Luís Grupioni e outros (2001, p. 65-8), fiquei com a sensação que a adoção destas normas alternativas na linguagem corrente é ou foi em parte alimentada por um ativismo político que procura através da grafia e gramática alternativas afirmar os direitos e identidade dos povos indígenas. Isto é mais óbvio na insistência na maiúscula inicial para os gentílicos indígenas: Guarani, Pataxó, contra a norma da grafia oficial, guarani, brasileiro, português, chinês. Mas também em geral no querer ter normas próprias que reflitam a língua original, ainda que mediada pelas convenções dos antropólogos.
Naturalmente cada um escreverá como achar melhor. Mas para mim escrever os guarani ou os ianomâmi para maior aproximação à lingua original não faz sentido. A língua original é a língua original, e a língua portuguesa é a língua portuguesa. Em inglês o plural é the English, mas nós escrevemos os ingleses, não os inglês ou os English. Do mesmo modo é os italianos e não os italiani; e os espanhóis e não os españoles.
E quem quiser uma posição mais contundente contra grafias e gramáticas alternativas pode ler a Dica 158 do Professor Paulo Hernandes.