O dicionário Houaiss, o único em que encontrei a expressão, diz que entre a cruz e a espada é o mesmo que entre a cruz e a água benta, entre a cruz e a caldeirinha ou entre a espada e a parede. Nos três primeiros, o Houaiss (verbete cruz) simplesmente remete para entre a espada e a parede, e no verbete espada vem (desenvolvendo abreviações):
entre a espada e a parede em situação muito difícil, a que não se tem como fugir; entre o malho e a bigorna, entre o martelo e a bigorna, entre a cruz e a água benta, entre a cruz e a caldeirinha, entre a cruz e a espada
Quando vi nesta pergunta entre a cruz e a espada associei logo a entre a espada e a parede, a única destas expressões que eu conhecia, e imaginei alguém ameaçado de um lado com uma espada, do outro com crucificação ou cruz no sentido figurado de tormento, sofrimento. Entre a espada e a parede é uma imagem talvez mais clara: na minha experiência, é muito usada quando uma pessoa é obrigada a fazer algo que não quer (como confessar algo), como se estivesse encurralada entre uma parede e alguém armado com espada, e não tivesse portanto como se esquivar. Provavelmente não é coincidência que os exemplos mais antigos que encontrei de entra a cruz e a espada, a partir de 1873, a pessoa em causa parece precisamente sentir-se coagida (grafia original; negrito meu em todas as citações):
« Na côrte eu não tinha o direito de exigir a mais insignificante cousa para meus amigos sem o consentimento previo e demorado do conselheiro, e na provincia nenhum pedido podia ser encaminhado ao governo sem o—visto—do Sr. Dr. Freitas, de modo que, entre a cruz e a espada, eu sentia-me coacto pela dependencia mais humilhante. [...]
A Reforma, orgão democrático, Rio de Janeiro, 1873
[Fala o General Madeira:] — […] peço perdão de meus erros.
— É tarde de mais, meu « inglez republicano », meu bor… das dúzias, lê o que os pintinhos azucrinados te mandam de presente !
E o pobre General Madeira, entre a cruz e a espada, leu o seguinte:
“Diario das Alagoas, 1889
O velho N’gunza, vendo-se entre a cruz e a espada, homem timorato, a que o medo do ginvunge—feitiço—fazia estremecer de horror, declarou que nos ultimos tempos lhe haviam morrido muitos de seus filhos; que a quimbanda e a gente entendida da terra o accusavam de feiticeiro […]
Agostinho Sesinando Marques, Os Climas e as Producções das Terras de Malange á Lunda, Lisboa, 1889
As outras duas expressões — entre a cruz e a água benta e entre a cruz e a caldeirinha — vêm da mesma ideia: a caldeirinha (Aulete) é um vaso de cobre para transportar a água benta. Encontrei esta explicação relativamente à expressão congénere castelhana — entre la cruz e el agua bendita — neste Discursos Predicables de Diversos Tratados de 1604 (tradução minha):
[…] todas as nações tinham um refrão ou linguagem com que dão a entender o mal ou grande tormento que tinham ou esperavam, como diz o castelhano, andais entre a cruz e a água benta, vindo a metáfora de quando o sacerdote vai dar a extrema unção, leva o menino de altar o círio e água benta, e o sacristão a cruz: e porque quem recebe a extrema unção está em grande agonia e aflição de morte, diz-se que fulano está entre a cruz e a água benta.
Conclusão: dado o que diz o Houaiss, os exemplos mais antigos, e o significado claro das expressões congéneres (depois de sabermos da extrema unção), parece-me claro que tradicionalmente o significado de entre a cruz e a espada foi ’em grande perigo, sem escapatória possível’, e não ’num dilema’. Mas naturalmente, com o tempo, as pessoas são livres de reinterpretar a expressão e lhe dar novos usos.
Origem da expressão
Com segurança, posso apenas afirmar que a expressão já estava em uso no Brasil em 1873. Quanto a como surgiu, podemos apenas especular. Respostas no Yahoo Answers, que o Centaurus me trouxe à atenção, sugere que cruz e espada se referem ao poder religioso e militar respetivamente. Mas a única fonte indicada (P.U.C. do Rio Grande do Sul, sem nome de autor nem título de obra) não é suficientemente precisa para ser seguida e confirmada. Nós poderíamos imaginar os judeus, que, que em Portugal por volta de 1500 tiveram de escolher entre a conversão ou a morte (ou o exílio); ou até os ameríndios que se viram de repente a braços com padres e militares da europa.
Eu inclino-me mais para outra hipótese: que a expressão tenha resultado de um cruzamento entre cruz e água benta/caldeirinha e espada e parede. Estas expressões são bem mais antigas: entre a cruz e a água benta existia em castelhano em 1604 e está atestada em português a partir de 1736 (Cartas do Cavaleiro de Oliveira); entre a cruz e a caldeirinha encontra-se a partir de 1823 (Correio do Rio de Janeiro); e entre a espada e a parede a partir de 1836 ( Gazeta Universal, Pernambuco). Entre a cruz e a espada aparece mais tarde, com o mesmo significado e combinando elementos das expressões mais antigas mas que continuavam em uso. Então poderia muito bem ter resultado de um cruzamento, deliberado ou acidental, das expressões anteriores.