Para mim, ciclo vicioso é correto nos contextos em que é habitualmente usado. Não é a expressão original, mas os falantes têm o direito de inventar nomes novos para conceitos antigos, e ciclo vicioso assenta que nem uma luva ao conceito que designa. A correção de uma expressão pode ser uma questão de opinião. Portanto vou começar com o que consegui apurar de objetivo:
Círculo vicioso é a expressão original e vem pelo menos já do latim moderno circulus vitiosus. A expressão latina está atestada em 1597 (Ciberdúvidas, 2015) e é muito comum nos séculos seguintes (Google Books). O significado original é ‘raciocínio circular’. Do latim, passou a várias línguas vernáculas europeias, tendo em várias rapidamente adquirido o segundo sentido de encadeamento de fenómenos (exemplos dos dois significados mais abaixo). Em português encontramo-la no Google Books no sentido de raciocínio circular a partir de 1822¹ e no sentido de encadeamento de fenómenos a partir de 1847.²
Ciclo vicioso é bem mais recente. Só aparece no Google Books em 1945.³ Parece ser usado apenas no sentido de encadeamento de fenómenos; nunca no de raciocínio circular.
Ciclo vicioso é mais recente, mas tornou-se parte da língua. No Google geral ciclo vicioso é quase tão frequente como círculo vicioso (398 contra 435 milhares); o Corpus do Português—Web apresenta proporção parecida (1499 contra 1601). No Google Books a frequência relativa de ciclo vicioso é menor, mas ainda assim muito significativa:
Anos 1822-99 1900-44 1945-69 1970-89 1990-99 2000-17
Círculo vicioso 125 48 40 45 70 277
Ciclo vicioso 0 0 19 33 42 122
Mas os Dicionários registam apenas círculo vicioso. Procurei nos vários dicionários online, no Houaiss (Lisboa, 2002) e no dicionário da Academia das Ciências de Lisboa (2001); todos trazem círculo vicioso, nenhum traz ciclo vicioso.
A situação na língua inglesa é parecida. A frequência relativa de vicious cycle no Google Books é apenas ligeiramente superior ao observado no português (ver Google NGram, já observado na resposta do Centaurus), e não tenho conhecimento de dicionários que tenham um verbete para vicious cycle. No entanto, alguns mencionam no verbete vicious circle a existência da variante vicious cycle no sentido, tal como se observa no português, de cadeia de fenómenos. (Ver artigo na Grammarphobia ou discussão no Merriam-Webster.)
A meu ver, a razão da preferência dos dicionários por círculo é histórica—círculo vicioso é a expressão original. No entanto não vejo que esta razão invalide ciclo vicioso, e parece-me até questionável a sua completa omissão nos dicionários de português e alguns de inglês, dada a presença significativa da expressão nestas línguas já desde há algumas décadas.
Ademais, ciclo é uma boa metáfora no caso da cadeia de fenómenos; mais sugestiva até que círculo. Nestes casos, nós temos um fenómeno A que causa o fenómeno B que por sua vez causa A, que volta a causar B, e assim repetindo-se sem fim à vista a cadeia (que pode ter mais de dois fenómenos), perpetuando ou até agravando o problema. Por exemplo, quebra no rendimento das famílias leva a uma redução da procura (que é o que os portugueses chamam à demanda dos brasileiros), que leva à quebra na produção e aumento do desemprego, que por sua vez leva a nova quebra no rendimento das famílias, e assim continuamente. Ciclo transmite melhor do que círculo esta ideia de repetição interminável. Veja-se um dos significados de ciclo no Michaelis, que se aplica por exemplo aos ciclos do carbono, fósforo e nitrogénio, explicados mais abaixo no mesmo verbete:
2 Sequência de ações, fatos ou fenômenos constituintes de um processo periódico que, partindo de um ponto inicial, acabam por desembocar em um ponto-final que nada mais é que o retorno a esse ponto inicial e consequente recomeço.
Se a esta definição acrescentarmos que a sequência de fenómenos é indesejável, obtemos a definição de ciclo vicioso no sentido de cadeia de fenómenos.
Procurei e encontrei várias pessoas a afirmar que ciclo vicioso é errado. Curiosamente só uma delas, Gonçalo Neves no Ciberdúvidas (2016), destaca o argumento histórico; todas as outras argumentam principal (a linguista Sandra Tavares na Voz do Cidadão, 2014; após o minuto 8) ou exclusivamente (Mambos da Língua, Rádio Nacional de Angola, em colaboração com o Ciberdúvidas, 2014), que ciclo é uma metáfora inapropriada. A argumentação é deplorável. Ou focam apenas aceções de ciclo que não funcionam (‘período, época’, como em ciclo do ouro ou ciclo das grandes navegações), ignorando a que funciona (a 2 do Michaelis); ou definem círculo e ciclo e imputam-lhe conotações muito à maneira deles para demonstrar que círculo está correto e ciclo, errado. Gonçalo Neves também caracteriza ciclo muito idiossincraticamente (que um ciclo “se caracteriza por alternância e progresso”). E mesmo que a sua caracterização estivesse correta, os seus argumentos só se aplicam à noção de raciocínio circular; ele ignora o sentido “cadeia de fenómenos”, que é o único a que ciclo vicioso tem sido aplicado.
Por outro lado, o argumento histórico não invalida ciclo vicioso. Um falante tem o direito de cunhar nomes novos para coisas antigas. Vejamos um exemplo de raciocínio circular:
Ana:—“Três é o número perfeito; logo o triângulo, que tem três lados, é a forma perfeita.”
Bela:—“Porque é que três é o número perfeito?”
Ana:—“Então, se o triângulo, que tem três lados, é a forma perfeita, três é o número perfeito”.
Ciclo vicioso não é habitualmente usado para estas situações, nem me parece que resulte bem. Mas muitos portugueses nem sabem que círculo vicioso se aplica aqui (eu não sabia) e diriam que o argumento da Ana é uma pescadinha de rabo na boca (foto no Tripadvisor). Alguém pode dizer que isso seria um erro? É simplesmente uma nova metáfora (ou talvez seja antiga, sei lá eu), e muito sugestiva. Do mesmo modo, ciclo vicioso é uma nova metáfora, e muito sugestiva no sentido em que é usada, e é uma boa alternativa à metáfora original círculo vicioso.
Uma diferença em relação a pescadinha de rabo na boca é a semelhança entre as palavras ciclo e círculo, que permite pensar que ciclo vicioso apareceu devido a confusão. É o que afirmam Sandra Tavares e Gonçalo Neves. Mas não nos explicam como é que o sabem, nem como é que isso invalidaria ciclo vicioso. Se me mostrassem que ciclo vicioso não faz sentido, eu dar-lhes-ia ouvidos (eles tentam fazê-lo, mas falham). Mas ciclo vicioso faz sentido e é uma metáfora muito sugestiva para o fim com que é habitualmente usada. Provavelmente, essa é a razão ou uma das razões por que vingou. Então use-a quem quiser, e deixem quem quiser criticar.
Notas:
¹ Vicente José Ferreira Cardozo da Costa, Que he o codigo civil, Lisboa, 1822, p. 137; periódico mensal O Padre Amaro, Junho de 1825, p. 138., “he girar sempre no circulo vicioso de sim por que sim, não por que não”.
² Revista Universal Lisbonense, Tomo VI, 1847, p. 86, 122, 458, 498; Anónimo, A Questão Vinhateira do Douro, Porto, 1849, p. 13, 22, 30, 223, “enquanto o numerário girar no circulo vicioso d’agiotagem” (p. 223).
³ Fenação, Brasil, 1945, p. 46: “Observa-se um ciclo vicioso muito interessante. Alega-se que não há produção porque não se conta com meios de transporte. [Excerto 2] De outra parte, as estradas de ferro argumentam que não aumentam as suas linhas e não melhoram o seu material porque não há o que transportar.” Anais do Instituto de Medicina Tropical de 1952.