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Eu comecei a ler Os Maias (1888; completo) de Eça de Queirós há uns dias e já notei mais de uma vez um padrão que nunca tinha visto antes: negações com um pronome de objeto direto colocado antes da palavra não. Por exemplo (acho que deve ter mais):

"Teu pai é uma espécie de santo, ainda o não merecemos…" (Os Maias.)
"Afonso não ousou beijá-lo, para o não acordar com as barbas ásperas…" (Os Maias.)

Era isso comum ou habitual no português europeu do século XIX? É possível encontrar tal forma hoje em algum dialeto ou registro?

Jacinto
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pablodf76
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Sim, esse padrão foi comum no português, europeu e brasileiro, até ao século XIX. Chama-se a isso apossínclise, que é, citando este artigo do Ciberdúvidas:

intercalação de uma ou mais palavras entre o verbo e o pronome átono proclítico (ex.: «o que eu lhe não disse» [em vez de: «o que eu não lhe disse»]). Conforme explicado na Gramática da Língua Portuguesa, de Mateus et alii (2003:866-867), este processo era generalizado no português antigo e clássico, contudo, a partir do século XVII, a interpolação restringe-se à palavra não [...]

Mas a Gramática do Português da Gulbenkian (2013, tomo I, p. 37) observa que interpolações mais variadas continuam a ocorrer em romancistas do século XIX e em falares regionais atuais. E dá o exemplo “quando lhe eu disse” (em vez de quando eu lhe disse), registado no Alto Alentejo no final do século XX. E ainda hoje eu encontrei “se me ella saisse um lôgro” (em vez de se ela me saísse) em Cavar em Ruínas de Camilo Castelo Branco (p. 19, originalmente publicado em 1866). Mas nada disto se compara a “pois m'eu [tanto] por vós de peidos vazo” (…me vazo) nesta cantiga de escárnio e maldizer do século XIII.

Não me recordo de ter encontrado esta apossínclise no português atual. Quando comecei, aqui há uns poucos anos, a ver isso em autores do século XIX, também estranhei (eu tinha lido Os Maias na escola há muito tempo, mas já não me lembrava).

Agora, andei a ver no Corpus do Português, e mesmo no século XIX é mais comum o pronome depois do não. Mas há um padrão interessante. Salvo raras exceções, o pronome só vem antes dos não nas circunstâncias que atualmente exigem a próclise (ignorando aqui a negação, que exige, ela mesma, a próclise). Exemplos (negrito meu; indico a data da primeira edição, não a da edição do Google Books):

Descanse, que lhe não tocarei num cabelo! (Aluísio Azevedo, A Condessa Vésper, 1882.)

A medicina,—por que lhe não manda ensinar medicina?
(Machado de Assis, Dom Casmurro, 1899.)

O vinho, o famoso vinhito do Filipe do Ver-o-peso, já lhe não parecia o mesmo.
(Inglês de Sousa, O Missionário, 1891.)

[...] às vezes, de quando em quando, se te não custasse
(Júlio Dinis, Uma Família Inglesa, 1868.)

Não percebeste que era mentira, que eu dizia isso para te não molestar?
(Machado de Assis, Memórias Póstumas de Brás Cubas, 1881.)

Como te não lembraste dele, Ângelo? (Júlio Dinis, As Pupilas do Senhor Reitor, 1867.)

A caridade só me não humilha quando parte do coração e não do dever.
(Camilo Castelo Branco, Amor de Perdição, 1862.)

[...] e faça favor de me não quebrar mais a cabeça;
(Inácio Maria Feijó, Camões no Rossio, 1810.)

Reparem que nestes exemplos, mesmo tirando o não, a outra palavrinha a negrito obriga o pronome a ficar antes do verbo. Salvo raras exceções, na ausência destas palavrinhas (vejam aqui uma lista mais longa, mas não completa, destas palavrinhas), o pronome fica sempre depois do não. No entanto, também encontramos o pronome depois do não mesmo na presença destas palavrinhas, e pela pena dos mesmos autores. Portanto parece que estas palavrinhas simplesmente permitiam a colocação do pronome antes ou depois do não, enquanto que sem elas teria de ser sempre depois. Esta colocação do pronome antes de não parece ter persistido por mais tempo em Portugal, e ainda se encontram exemplos infrequentes no final do século XX.

Jacinto
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    Obrigado por tanta e tão completa informação! Eu também não tinha claro o negócio das "palavrinhas" (e ainda bem que já existia uma pergunta e uma resposta acerca delas). – pablodf76 Feb 25 '17 at 20:06
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    Excelente resposta. – Centaurus Feb 25 '17 at 23:45
  • Jacinto, tu usarias o acento grave em "até a hora de irmos embora"? Caso negativo, porque "ao" em "até ao século"? – Centaurus Feb 25 '17 at 23:48
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    @Centaurus Claro, "até à hora de irmos embora", "até ao minuto", mas, incoerentemente, "até sábado". É como se escreve por estas bandas; e como se fala (*a* é fechado, *à* é aberto). Também notei quanto vi que no Brasil é "até a hora" e "até o minuto". Mais uma daquelas diferençazinhas. – Jacinto Feb 26 '17 at 08:27
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    @Jacinto Mas não ficam duas preposições seguidas? – Centaurus Feb 26 '17 at 11:48
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    @Centaurus Sim. Mas preservar a sintonia com a língua falada é mais importante para eles do que evitar a dupla preposição. Seria "gramaticalmente incorreto" no Brasil, se está se perguntando. Mas não seria algo inédito, a língua portuguesa tem um certo histórico de complacência com a dupla preposição (vide para com). – Ramon Melo Feb 26 '17 at 15:28
  • @RamonMelo Valeu. – Centaurus Feb 26 '17 at 16:25
  • @Centaurus Pois ficam duas preposições seguidas. – Jacinto Feb 26 '17 at 18:30
  • @Ramon, A dupla preposição é óbvia quer na escrita, quer na fala. É óbvia em "até ao último minuto"; e para nós é óbvia também em "até à vista", porque este *à* é aberto, enquanto *a* é fechado. "Até à vista" aqui soa diferente de "até a vista doeu" (= "mesmo a vista doeu). Eu falo assim desde criancinha; nunca me preocupei com a lógica, ou falta dela, da dupla preposição. – Jacinto Feb 26 '17 at 18:35
  • @Jacinto Complicado. Você certamente aprendeu a língua oral antes da escrita, e certamente antes da norma escrita. Existe uma naturalização do regionalismo que provoca um certo confirmation bias, como você parece reconhecê-la em "nunca me preocupei com a lógica, ou falta dela", e, cometendo o pecado da generalização, seus conterrâneos parecem seguir seus passos. Mas, para nós que cá estamos, fica o estranhamento diante da falta de lógica. Se não vem da língua falada (já que a escrita não possui pronúncia), qual a razão para esta construção ter surgido e se popularizado? – Ramon Melo Feb 27 '17 at 12:23
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    Disclaimer: Longe de mim exaltar a lógica dos dialetos brasileiros. Temos - e sinto um certo orgulho disto - uma quantidade assombrosa de construções ilógicas, a maioria delas com alguma justificativa (por mais meia-boca que seja). – Ramon Melo Feb 27 '17 at 12:27
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    @Ramon, Pois, é uma boa pergunta. Mas já vem, por escrito, pelo menos do sXIX, e não era só aqui: "Sim, leitora castíssima, como diria o meu finado José Dias, podeis ler o capítulo até ao fim, sem susto nem vexame" Machado de Assis, D. Casmurro. – Jacinto Feb 27 '17 at 15:05
  • @Ramon, revisitei esta pergunta antiga, e creio que a tua pergunta acima, acerca da origem da dupla preposição até a, agora já tem resposta aqui. – Jacinto Sep 20 '20 at 20:05