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Ao escrever um texto, é muito comum utilizarmos um paralelismo nos pronomes. Ou seja, se tratarmos — com o pronome tu — determinada pessoa, então é comum que utilizemos os pronomes: te, ti, teu(s) e tua(s). Por exemplo:

Deixa-me ser a tua amiga, Amor,
A tua amiga só, já que não queres
Que pelo teu amor seja a melhor,
A mais triste de todas as mulheres.

Que só, de ti, me venha mágoa e dor
O que me importa a mim?! O que quiseres
É sempre um sonho bom! Seja o que for,
Bendito sejas tu por mo dizeres! (...)

                             — Florbela Espanca

Como podem observar, toda vez que Florbela refere-se a alguém, ela usa um paralelismo, sempre usa o pronome tu. Porém, num poema de Machado¹, podemos ler uma mistura entre os pronomes da segunda e terceira pessoa.

Por que sinto falta de você? Por que está saudade?
Eu não t̲e̲ vejo mas imagino suas expressões, sua voz t̲e̲u̲ cheiro.
Sua amizade me faz sonhar com um carinho,
Um caminhar, a luz da lua, a beira-mar.
Saudade este sentimento de vazio que me tira o sono,
me fazendo sentir num triste abandono, é amizade eu sei, será amor talvez...
Só não quero perder sua amizade, esta amizade...
Que me fortalece me enobrece por ter você.

                             — Machado¹

Seguem minhas dúvidas:

1) Visto que a norma culta proíbe essas variações, podemos concluir que o autor do poema utilizou a licença poética?
2) Os pronomes te, teu, sua e você, no poema, referem-se à mesma pessoa?


Nota 1: Há pessoas que afirmam que o poema Saudade é de Machado de Assis (1839 — 1908); outros, porém, dizem ser de Alcântara Machado (1901 — 1935).

Valdeir Psr
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  • P.S.: Em alguns textos, o esta (primeira linha) é descrito como verbo → Por que está* saudade?* – Valdeir Psr Jun 26 '19 at 21:31
  • Ver pergunta sobre *você* com *te* e outra sobre *vocês* com *vosso* – Jacinto Jun 27 '19 at 05:58
  • Quando à pergunta 1), a norma culta é estabelecida pelo uso e não regulada por entidade nenhuma, de modo que não me parece possível ir além das perguntas que linkei. Quando à 2), não há nada no poema que permita relacionar os pronomes com pessoas/entidade diferentes. Também não me parece possível dizer nada de objetivo além disto. – Jacinto Jun 27 '19 at 10:00
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  • @toliveira A pergunta linkada não responde completamente a minha, de modo que não vejo o porquê ser duplicada. – Valdeir Psr Jun 27 '19 at 18:13
  • @Jacinto Compartilho da mesma opinião quanto à resposta 2. Ao ver seria licença poética e por isso não faria sentido referenciar outras pessoas do texto, apenas queria uma elucidação. 1) As respostas são boas, uma pena que a maioria delas foquem apenas na língua coloquial/falada. No Brasil, há um decreto que "regulamenta" as novas regras da língua escrita. – Valdeir Psr Jun 27 '19 at 20:17
  • De acordo Arnaldo Niskier, “Concordamos com os linguistas que ninguém erra ao falar e sim transgride as determinações da norma culta, o que é perfeitamente aceitável na linguagem coloquial. Entretanto, no que se relaciona à escrita, há erro e não transgressão, o que não devemos admitir. O Vocábulo açúcar por exemplo, deve ser grafado com ç e acento e jamais ser aceito com dois s, o que não mudaria o som mas a etimologia da palavra.” – Valdeir Psr Jun 27 '19 at 20:19
  • Valdeir, o decreto que referes regula apenas a ortografia.A resposta do Luís Henrique à pergunta linkada já faz a distinção entre coloquial, o prescrito em gramáticas, etc. Mas se achas que isso não é suficiente, o que eu faria era precisar na tua pergunta exatamente o que é queres ver explicado que ainda não está respondido na outra pergunta. Nomeadamente, precisar o que é a norma culta. Se não é o que vem nas gramáticas, é o quê. Por outro lado, ocorreu-me agora, que se tratas alguém por você, a comunicação não será muito formal, certo? – Jacinto Jun 27 '19 at 22:27
  • @Jacinto Concordo com a resposta do Luís Henrique, por isso deixei claro que a maioria (e não todas) focam apenas na língua falada. O decreto supramencionado é um bom indício que a língua é "regulamenta", que há regras. O você, nos dias atuais, é, de fato, bastante informal. Porém este fato pode está ligado ao estilo do poeta ou licença poética. – Valdeir Psr Jun 28 '19 at 09:20
  • Qualquer português ficaria cheio de comichão ao ler esse poema... a falta de paralelismo é dissonante para os portugueses. – ANeves Jun 28 '19 at 11:08
  • No poema do Machado, ele usa você (eu///tu///você, ele, ela) e ele usa sua (minha///tua///sua. Não mistura nada. Ou seja, ele usa só a terceira pessoa do singular. A mistura sería usar você com o tu. Credo. Como é possível que ninguém falou nisso?? – Lambie Sep 08 '21 at 16:38

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Eu entendo que não se trata de licença poética. É muito comum na linguagem informal em português o uso do "teu" "te" em conjunto com o "você", particularmente nos estados do sul e sudeste (Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul). O uso de simultãneo de seu/teu na mesma frase também é comum, e em muitos casos não é somente uma marca de informalidade, mas sim um erro de português mesmo, já que a maioria das pessoas pouco sabe sobre as conjugações e pronomes da segunda pessoa do singular. São coisas que se aprende na escola, e depois raramente se usa.

Assim, na linguagem informa falada, diz-se:

-Você sabe que se teu filho for mal na escola, a culpa é tua!

ou ainda:

-Você sabe que se teu filho for mal na escola, a culpa é sua!

O uso do pronome "tu" é quase que exclusivo dos estados do extremo Sul do Brasil, Rio Grande do Sul e Santa Catarina. A frase abaixo certamente só seria falada por um morador do extremo sul do Brasil.

-Tu sabes, que se teu filho for mal na escola, a culpa é tua!

Já o uso dos pronomes "teu", "tua" é utilizado mais livremente, mesmo para o pronome "Você", quando da linguagem falada ou informa.

Zuabros
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    Mas será que a alternação entre "seu" e "teu", na mesma frase, como no poema, é comum no português do Brasil? O exemplo que você deu usa somente "teu" e "tua" com "você". – Dan Getz Jul 12 '20 at 14:07
  • @DanGetz, acho que "teu" é mais informal e forte do que "seu", porém, claro que pode; ex.: "a tu' idei' é ruim, mas, pelo menos, a su' intenção foi boa". Hoje, eu tento me manter num só pronome, então, resolvi falar apenas "tu" e "vós", em vez de "você" e "vocês". Assim, eu sou uma grandíssima exceção, mas, antes d'eu decidir falar "tu" e "vós", era muito comum eu misturar "seu" e "teu", principalmente por raiva ou por querer ser informal com alguém; ex.: "cala a tua boca ou eu jogo (o) seu celular no rio!". –  Aug 09 '20 at 21:39
  • @DanGetz, disse isso porque a minha observação pode estar comprometida, já que já estou quase me acostumado a "tu" e "vós". –  Aug 09 '20 at 21:41
  • @Schilive obrigado, faz sentido. Acho que a tua explicação pode servir como resposta a "1" e "2" na pergunta original. – Dan Getz Aug 09 '20 at 22:17
  • @DanGetz, pode se usar apenas como um complemento para uma resposta, porque eu estava me referindo apenas à língua falada. –  Aug 09 '20 at 22:30
  • @Schilive "(1) podemos concluir que é licença poética? não, porque existe na lingua falada"... e para (2) parece-me que tens um bom motivo para a possibilidade de "sim" nos teus exemplos – Dan Getz Aug 09 '20 at 22:39
  • @DanGetz, só porque existe na língua falada, não quer dizer que não é licença poética. Quero dizer que, em uma resposta, explicaria muito mais as coisas. Aqui, só respondi a um dos pontos. Mas realmente pode servir de base para uma resposta. –  Aug 09 '20 at 22:49
  • @DanGetz sim é comum o uso de seu e teu na mesma frase. Adicionei esta opção na resposta. Tenha em mente que a conjugação dos verbos e até mesmo o uso correto dos pronomes da segunda pessoa do singular não são de conhecimento geral da população; é algo que acaba sendo usado mais em textos acadêmicos ou linguagem de advocacia. – Zuabros Aug 13 '20 at 11:55