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Estava lendo as confissões de Santo Agostinho (editora petra, tradução de Frederico Ozanam Pessoa de Barro, p.124 do primeiro volume), quando me deparo com o seguinte texto:

Por isso Manés, afastando-se dessa regra, falou tanto sobre essas coisas, que, convencido de ignorante pelos que as conhecem bem, viu-se claramente o crédito que merecia em matérias mais obscuras.

Contexto:

  • Manés é o profeta criador do maniqueísmo.
  • As "coisas" se referem aos assuntos e discussões trazidas pelo profeta que, no entender do santo, não são proveitosas, por isso as classifica "como matérias obscuras".

Não entendi o que significa o predicativo(?) "convencido de ignorante pelos que as conhecem bem"

hellofriends
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    A minha interpretação de "essas coisas" é diferente. Creio que elas se referem a coisas terrenas (como previsão de eclipses), que não são necessárias à piedade (sentimento religioso). As "matérias mais obscuras" são, na minha opinião, outras matérias, diferentes das terrenas; se são "mais" obscuras, têm de ser outras. Numa tradução em inglês vem "abstruser", ou ’mais difíceis’, em vez de "mais obscuras". – Jacinto Aug 19 '21 at 21:21
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    Se "ignorante" se refere a "Manés" então, interpreto como "convencido de que é ignorante" ou "convencido da (sua) ignorância". Se assim for, "convencido de ignorante pelos que as conhecem bem" diria que Manés foi convencido de que é ignorante pelos que "as conhecem bem". – Schilive Aug 19 '21 at 22:40
  • Hellofriends, podes incluir a referência das tuas Confissões na pergunta (editora, ano, nome do tradutor, página). Isto é boa prática em geral quando se inclui uma citação, e seria especialmente útil (pelo menos para mim) neste caso. Eu suspeito que isto seja uma tradução antiga, ou adaptação de tradução antiga, o que explicaria a aceção arcaica de convencido. – Jacinto Aug 21 '21 at 06:19

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Fulano foi convencido = ’foi provado que fulano é culpado’

Convencido de ignorante é no mínimo muito incomum e um arcaísmo. Poderá ter sido influência desta tradução espanhola de 1930, que usa precisamente essas palavras; este tipo de construção parece ser comum no espanhol.

Mas em português, do que vi nos dicionários e literatura, o normal seria convencido de ignorância ou convencido de ser ignorante. Mas isto induziria em erro o leitor atual: qualquer um pensaria que o Manés ficou persuadido de que era ignorante. Mas nas Confissões o verbo convencer é usado no sentido do inglês convict, sentido que caiu em desuso entre nós e que só se encontra em dicionários antigos, como no Raphael Bluteau (1712), Domingos Vieira (1873) ou no verbete original do Aulete:

[…] Convencer de 1. provar que é culpado de: O juiz convenceu-o de furto.

Então o que a passagem diz é que os que conhecem bem aquelas coisas provaram que o Manés era “culpado de ignorância”.

Encontra-se esta uso de convencer na literatura e imprensa do passado; a tentação de interpretar convencido como ’persuadido’ pode ser muito forte, mas clicando e lendo o contexto, verão que o significado é ’provado que é culpado’: “convencido de adultério” (Gazeta Jurídica, Rio de Janeiro, 1877), “homens convencidos de indiscrição” (Machado de Assis, 1891); “convencido de um momento de infidelidade” (Joaquim Manuel de Macedo, 1845); e encontramos esta linguagem numa lei ainda em vigor no estado de São Paulo (obrigado ao Loremlpsum, que ma trouxe à atenção), que pune com demissão o funcionário que “for convencido de incontinência pública e escandalosa”.

Interpretação das Confissões

Podemos confirmar que é esta a interpretação correta de convencido olhando o original em latim lado a lado com uma tradução em inglês de 1631:

[…] convictus ab eis, que ista vere didicissent

[…] confuted by those who had learned the truth of these things

Ora confute somebody (Oxford Learners Dictionary) significa ’provar que esse alguém está errado’. E o convictus do latim original é o particípio passado de convincere, que segundo o Etymoline entre outras coisas significava “convict of crime or error”, ou ’dar por provado que cometeu crime ou erro’. ; o dicionário de latim de Lewis e Short acrescenta “refute”, que partilha o significado de ’refutar’, entre outros, ’anular afirmações ou julgamentos de outrem de maneira categórica’ (Michaelis 4). Então em português, e para evitar a confusão do arcaísmo convencer, poderíamos dizer:

Manés […] falou tanto dessas coisas, que, provada a sua ignorância pelos que as conhecem bem […]

ou simplesmente

Manés […] falou tanto dessas coisas, que, refutado pelos que as conhecem bem […]

Isto faz sentido no contexto geral. Começando no livro V, capítulo III (têm aqui esta tradução em português; não consegui encontrar a citada na pergunta), Santo Agostinho diz que comparou os ensinamentos de Manés sobre coisas terrenas (movimentos dos astros, eclipses e coisas assim) com os dos antigos filósofos, e concluiu que Manés está errado. Então é isto que ele quer dizer com “convictus” ou refutado pelos que as conhecem bem [essas coisas]”: os antigos filósofos (na verdade, os seus ensinamentos) provaram que Manés estava errado. E se ele estava errado acerca de coisas terrenas quanto mais não estaria acerca de coisas mais complexas, divinas. Note-se que não há nas Confissões qualquer sugestão que o Manés tenha reconhecido os seus erros, ou que ele tenha sequer dado atenção aos ensinamentos dos filósofos. Logo o sentido que nos é familiar de convencer (’persuadir’) não se aplica ali.

Jacinto
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    perfeito! A resposta mais completa que eu poderia querer. Obrigado. – hellofriends Aug 20 '21 at 01:02
  • @hellofriends, ah... és muito gentil e pouco ambicioso :) Fico contente que tenhas gostado. – Jacinto Aug 20 '21 at 19:35
  • @hellofriends, fiz algumas alterações: expliquei melhor o contexto daquele trecho; reforcei uns pontos aqui e ali, e inclinei-me agora mais para convencer de implicar não só que ficou provado que a pessoa fez algo, mas também que a pessoa reconhece isso; é que vários dicionários antigos sugerem isso. – Jacinto Aug 20 '21 at 20:41
  • @LoremIpsum, esse exemplo é excelente! O primeiro natural, fora de um dicionário, que eu vejo. Então vejo com melhores olhos o "convencido de ignorância": no Estatuto deve ser irrelevante se o funcionário "convencido" admite ou não a sua culpa. Mas a verdade é que não temos nenhuma outra palavra para esse sentido de "convencido": temos de dizer "declarado culpado, julgado culpado em tribunal" ou coisa assim. Arcaísmo: aquilo são possivelmente traduções antigas, ou adaptações de traduções antigas; a que eu linkei foi publicada por uma organização religiosa, sem nome de tradutor nem nada. – Jacinto Aug 21 '21 at 06:02
  • Interessante, Jacinto. Eu jamais teria pensado nisso, já que convencido de ignorante não me parece estranho — um pouco diferente, mas não estranho. Parabéns pela resposta! – Schilive Aug 22 '21 at 01:07
  • @Schilive, O "convencido de ignorante" versus "... de ignorância" é uma questão relativamente menor. Ao que parece, "... de ignorante" é ou foi usado em espanhol, e eu tou em crer que aquela tradução portuguesa foi adaptada de uma espanhola praticamente "igual" que eu encontrei; em português encontrei um único exemplo de "convencido de ignorante", do Rio Grande do Sul. Coincidência? Agora o choque para mim foi descobrir que "convencer de ignorância" significava "provar que é culpado de ignorância" (= ao "convict" do inglês)! – Jacinto Aug 22 '21 at 06:36