3

Eu hoje li, em outro site, a citação de um provérbio português que seria traduzido como "a procissão ainda nem saiu da igreja". Esse provérbio, ou ditado, ainda é de uso corrente em Portugal? É usado no Brasil? O significado não é difícil de perceber embora, pessoalmente, eu nunca tenha ouvido. Imagino que seja bem antigo, visto que procissões já "saiíram de moda" há muito tempo aqui no Sudeste do Brasil.

Centaurus
  • 24,305
  • 16
  • 73
  • 159
  • Talvez exista uma versão mais longa: "a procissão ainda nem saiu da igreja e nem sequer chegou ao adro" (fonte; adro: pátio, "espaço descoberto na frente [...] das igrejas"). – stafusa Oct 26 '21 at 23:29
  • @stafusa, esse exemplo parece ser único e uma elaboração de a procissão nem saiu da igreja influenciada por a procissão ainda vai no adro. E é uma elaboração mal pensada: se dissesses a procissão não saiu do adro, nem sequer ainda da igreja, ainda vá, mas se não saiu do igreja, é óbvio que não pode ter chegado ao adro (o adro é fora da igreja). – Jacinto Oct 27 '21 at 12:28
  • @Jacinto Concordo, do ponto de vista lógico é um mau complemento (ou há procissões que partem da igreja?). Se ainda por cima não está em uso nem há registro anterior, seria o caso de remover meu comentário inicial. – stafusa Oct 27 '21 at 13:48
  • @stafusa, não vejo necessidade de retirar o comentário: foi a tua primeira ideia. As procissões mais comuns são no fim da missa: abre-se a porta principal, o pessoal sai e vai formando a procissão no adro. Creio que naquele exemplo, é um título de artigo, o autor simplesmente quis reforçar a versão tradicional. – Jacinto Oct 27 '21 at 15:40

1 Answers1

2

Bem, sendo eu o “culpado”, tenho de responder. É bem conhecida em Portugal a frase feita a procissão ainda vai no adro, significando ’isto é só o começo, vem aí muito mais do mesmo’. O adro (Priberam) é um espaço aberto em frente à igreja, onde normalmente começam as procissões. A Infopédia dá uma definição ligeiramente diferente:

diz-se quando queremos dar a entender que os factos sucedidos não passam do prólogo de outros mais graves que hão de suceder

Isto parece-me demasiado restritivo: provavelmente usa-se a frase sobretudo acerca de coisas más, mas não tem de ser assim. A procissão ainda nem saiu da igreja eu não conhecia, mas encontra-se com o mesmo significado na imprensa portuguesa recente, e a variante ainda a procissão não saiu da igreja ao que parece já vem num livro de 1981 (o Google não mostra o conteúdo). A frase tradicional já vem do século XIX, mas continua perfeitamente atual. Exemplos:

A bravata da defunta [Aliança Democrática] está a produzir cada vez mais vítimas. […] Alguém nos diz que “ainda agora a procissão vai no adro” e mais vitimas vão surgir
Público, 15-4-1999

[…] tudo isto, dizia, determinou a multiplicação dos estudos sobre o salazarismo — e a procissão ainda vai no adro.
Análise Social, 1984

Aqui encontrei uma elaboração que nunca tinha ouvido, apropriada para quando alguém quer fazer algo antes de tempo, parece-me; algumas procissões levam da igreja uma estátua de algum santo, que no fim é posto de novo no altar:

— Quer isso dizer que não tencionas viver um dia com ele?
— Caramba mulher. Isso é o que eu chamo pôr o carro à frende dos bois. Pois se a procissão ainda agora vai no adro já tu queres meter o santo no altar?
Manuela Inês, 2013

No Brasil

Vendo as coisas aqui de Portugal, quer-me parecer que no Brasil a frase sempre foi rara, se não praticamente desconhecida. Vi tudo quanto vai no adro (desde 1800) na Hemeroteca Digital Brasileira e encontrei apenas oito exemplos, sendo cinco de correspondência de Portugal e apenas três de produção local brasileira: um no Jornal do Comércio (1978) de Manaus, e um n’O Dia (1924) e outro na Última Hora (1964) de Curitiba:

Escrevemos nos primeiros dias deste ano que [??] seria marcado pela agudização da divergência franco-americana. Ainda a procissão vai no adro e já o sr. Truman acha dever botar palavra. A que não iremos assistir daqui a meses quando Washington começar a sentir os efeitos da política externa francesa de que se apercebe ainda difusamente?
Vitor Rego, “Truman e a dívida histórica”, Última Hora, Curitiba, 3-3-1964

Jacinto
  • 44,937
  • 17
  • 141
  • 257