Etimologicamente, válvula é diminutivo de valva. No latim, valva era a porta de duas metades, que abrem uma para cada lado.
No português, tradicionalmente, valva significou apenas, e continua a significar, a concha dos moluscos, incluindo as dos bivalves, que têm duas valvas (Moraes Silva 1789); as duas metades da vagem do feijão, ervilha, e coisas desse tipo em vagens e cápsulas de frutos e sementes (Cândido de Figueiredo 1899); e mais uns outras aceções altamente especializadas (ver Infopédia ― termos médicos). Por sua vez, válvula ficou reservado para membranas ou peças que regulam o fluxo de líquido ou gás, deixando-o passar apenas num sentido. Primeiro, a propósito da circulação do sangue (Raphael Bluteau 1721), mais tarde também na mecânica (Moraes Silva 1858).
Mas a partir dos anos 50 começaram a aparecer na literatura médica brasileira alguns valva em vez do tradicional válvula, e nos anos 90 valva já era até o termo mais comum; e em 2001 a Sociedade Brasileira de Anatomia adotou oficialmente o termo valva para cada uma das tradicionais válvulas do coração (ver Aloir Queiroz de Araújo, “Valva ou válvula?”, Arquivos Brasileiros de Cardiologia, 2002), o que já se reflete nos dicionários brasileiros. Em Portugal manteve-se a terminologia tradicional, que é a que aparece no Priberam e pormenorizadamente na Infopédia ― termos médicos. De modo que baseado no Aulete e no Michaelis, temos no coração (com ligações à Wikipédia para quem estiver interessado em anatomia):
Termos tradicionais Novos termos
e em uso em Portugal anatómicos no Brasil
válvula mitral ou bicúspide valva atrioventricular esquerda
válvula tricúspide valva atrioventricular direita
válvula aórtica valva aórtica
válvula pulmonar valva pulmonar
A evolução no Brasil reflete a da terminologia em latim. Pesquisei no Google Books, e encontram-se em obras de anatomia os termos latinos a par dos vernáculos. Antes de 1950 encontrei valvula aortae (literalmente ’válvula da aorta’) mas não valva aortae; este último só aparece, infrequentemente, nos anos 50; mas nos 70 já é dominante. Para isto terá contribuído a Nomina Anatomica (Wikipedia), uma terminologia em latim acordada internacionalmente. Na sua primeira edição, 1895 (p. 68), encontramos apenas valvula; mas na edição de 1961 (mas já aprovada em 1955 no 6º Congresso Internacional de Anatomistas) já vem valva aortae (valvula designa apenas compontentes da valva), tal como na sucessora da Nomina Anatomica, a Terminologia Anatomica de 1998, ainda em vigor (para os interessados, fica o acesso à Terminologia completa).
A terminologia latina influenciou pelo mos três brasileiros: Antônio Fortuna et al. (“Anatomia da valva atrioventricular esquerda”, Revista Brasileira de Cirurgia Cardiovascular 3(3), 1988). Queixando-se eles das duplas e triplas terminologias, dizem:
A nomenclatura recomendada pela Nomina Anatômica [5ª edição, 1984], constitui a alternativa para os que buscam a padronização da terminologia anatônica. De acordo com esta referência, utilizaremos, no presente trabalho, os termos “valva atrioventricular esquerda” [p. 203]
[…]
Conclusões
1 O termo “valva atrioventricular esquerda” deve ser preferido ao “válvula mitral”. [p. 207]
Também a tradicional válvula ileocecal passou a valva no Aulete e Michaelis (é uma prestimosa válvula/valva que impõe sentido único ao trânsito intestinal).
Este uso de valva no Brasil parece não ter ainda verdadeiramente passado para fora do contexto médico. Procurei na Hemeroteca Digital Brasileira, que tem o texto integral de imensos periódicos brasileiros, e encontrei valva aórtica só depois de 2010, e apenas três ocorrências; contra 19 de válvula aórtica no mesmo período. Isto vai de encontro à experiência do Schivile e Stafusa (ver pergunta e comentário acima).