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A palavra "atraência" (= atratividade):

  • não consta em nenhum dos oito dicionários que consultei,
  • não é aceita pelos corretores ortográficos que testei,
  • não consta no Corpus e
  • retorna poucos hits relevantes nos buscadores online.

Ou seja, parece ser um erro, e nem sequer um muito comum.

Contudo, por alguma razão sempre a tive como uma palavra cotidiana, correta; os tradutores da Google e da DeepL traduzem corretamente seu significado, e os exemplos de uso na rede podem ser poucos, mas existem (e.g., 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, PDFs: 8, 9, 10).

Qual seria o dialeto ou comunidade em que ela é corrente? Ou seu uso seria tão raro, que só se pode classificá-la como erro?

stafusa
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  • Para além da resposta que escrevi ainda há outra perspectiva, e.g. os corpos FOLHA/PÚBLICO quando foram compilados tinham o defeito de terem poucos termos técnicos da física e outras áreas porque as fontes eram publicações periódicas generalistas. Se estás à procura de "atraência" no campo científico deves procurar em indices científicos e teses para saber se o termo é usado em universidades... – bad_coder Jun 19 '23 at 01:44
  • À falta de um "dicionário especializado de física, quimica, etc..." a terminologia em português é frequentemente um tradição mantida pelas instituições e sendo que a maioria das publicações são em inglês até nos campos científicos se vê divergência de termos. Por exemplo, a propósito dos morfemas alguns escrevem "morfêmico" enquanto outros "morfemático" o que coloca o problema de haver 2 palavras, ambas pouco usadas, para a mesma coisa... Colocar os autores de um campo de acordo sobre terminologia para uniformizar as coisas também não é fácil portanto pode haver ambiguidade nos termos. – bad_coder Jun 19 '23 at 01:48
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    @bad_coder-onstrike Bom ponto, mas, não, nunca vi "atraência" ser usada no sentido técnico. Interessante o exemplo de morfêmico/morfemático. – stafusa Jun 19 '23 at 08:10

1 Answers1

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Esta análise deve começar pela morfologia, o primeiro passo é tentar reduzir a palavra ao radical mais simples.

Vamos fazer a análise morfológica de ambas as palavras começando pela palavra atratividade antes de tentar analisar atraência.

A. Análise morfológica de atratividade.

  1. atra-tividade (nome feminino) > atra-ir (verbo da 3ª conjugação).

  2. Vamos ver no dicionário o sentido do radical:

    atrair

    verbo transitivo

    Origem etimológica: latim attraho, -ere.

    Uma das coisas que aqui devemos reparar é o radical ser, pela sua natureza, um radical verbal porque para uma coisa ser atraente (adjectivo) tem de atrair em primeiro lugar.

  3. O radical verbal atra- é indivisivel na morfologia portuguesa. (Reparar que tiramos a vogal temática da 3ª conjugação -i- e a desinência do infinitivo -r que juntos são -ir.)

  4. (Aqui vale a pena um parêntesis, podemos espreitar a morfologia do latim e ver que attraho é ad- + trahō transliterado "a si"- + "puxar" com o radical simples. Fazemos assim mais uma divisão que não está disponível na morfologia do português e chegamos a um radical indicado como tendo origem no proto-indo-europeu. Ver traho.)

  5. atra-(ir) > atra-tiv-o/a (adjectivo ou nome).

    Aqui evidenciamos o primeiro passo da derivação. Devemos concentrar-nos nas propriedades do sufixo -tiv-o/a), que é um sufixo deverbal (não pode ser denominal nem deadjectival) e portanto é coerente com a base verbal radical simples. O sufixo forma nomes e adjectivos.

  6. atra-tiv- o/a > atra-tiv-idade (nome feminino).

    Por fim acrescentamos o segundo sufixo e formamos a palavra - é uma dupla derivação.

O mais importante para completar a nossa análise é o sufixo -idade, este é elencado na literatura linguística como sufixo inteiro (o -i inicial é considerado parte integrante do sufixo e não uma "vogal de ligação"). É um sufixo que forma nomes deadjectivais - vemos que a classe lexical do produto é de facto um nome e não um adjectivo.

B. Análise morfológica de atraência.

Começamos no ponto 3. da análise anterior sendo que os pontos 1. e 2. seriam iguais para ambos os casos.

  1. atra-ência > ????

    Aqui começam os problemas:

    1. Por razão ortográfica e fonética vemos que não existem nem ditongos nem encontros vocálicos -aê- em portugês.

    2. Não existe um sufixo -ência em português!

    3. Existem 2 sufixos próximos do hipotético -ência que seriam:

      • ncia- um sufixo que forma nomes deadjectivais e escolhe radicais como base.

        Este não está disponivel porque a base não é verbal!

      • ncia- um sufixo que forma nomes deverbais e escolhe temas como base.

  2. atra-(ir) > atra -ê- ncia

Vamos então começar por verificar a escolha de Tema Verbal pela sufixo. O sufixo -nica está indicado na literatura como escolhendo Temas do Presente, vejamos o quadro:

1ª conjugação 2ª conjugação 3ª conjugação
TV infinitivo dormin -a -r respond -e -r transfer -i -r
TV passado dormin -a -do respond -i -do transfer -i -do
TV presente dormin -a - respond -e transfer -e

Portanto, vendo as seleção do sufixo, de facto, o Tema Verbal do Presente para verbos da 3ª conjugação é -e e temos mais uma razão a reforçar a possiblidade de atra -ê- ncia.

Vamos consultar a literatura:

2.4.1.5 Nomes sufixados em -nci(a)

A forma da base verbal a que -nci(a) se anexa é a do tema do presente, como o revelam os deverbais formados a partir de verbos da 2ª conjugação (proceder/procedência) e de 1ª conjugação (culminar/culminância).

Nos nomes derivados de verbos de tema em -i- ocorre uma divergência fonológica relativamente ao expectável, pois verifica-se discrepância entre a VT do verbo base (fluir, gerir, aderir, anuir) e a que ocorre no nome em -nci(a): -e (fluênica, gerência, aderência, e anuência). Não é esta razão suficiente para se considerar que o sufixo tem o formato -enci(a) . Na realidade estes nomes em correlação paradigmática com os verbos da 3ª conjugação são herdados do latim. Nesta lingua, os verbos que estão na origem dos verbos portugueses tinham tema em -E- 'breve'.

in Gramática Derivacional do Português, Alexandra Soares Rodrigues, Isabel Pereira, Graça Rio-Torto. Imprensa da Universidade de Coimbra, 2016.

(Negritos meus.)

Vale a pena ler o capitulo acima citado na integra. Tentei numa site de transcrição fonética converter o attráhere da 3ª conjugação latina -ere (no latim é -are, -ēre, -ere, -ire) e parece que de facto o verbo tem o "tema em -E- 'breve'" portanto a única razão que encontro é ortográfica... É possivel que em algum momento da história tenham decidido evitar a escrita do -aê- em português o que invalidaria a escrita de "atraência"...


Por fim, os recursos que citas:

  • O Corpus do Português é datado entre 2012-2019. Portanto, fosse qual fosse a regra que tivesse retirado atraência do vocabulário deve ser muito anterior a isso.
  • O DeepL propriamente dito usa técnicas NLP para fazer correspondência entre produtos de derivação provavelmente saltando regras lexicológicas que sejam muito refinadas, sobregeração de resultados.
  • O resultado no jusbrasil... Recentemente tive a experiência enriquecedora de conviver com um grupo de advogados brasileiros. Acho que em qualquer sítio onde se fale português a subtileza do que acabamos de descrever é uma quantidade de trabalho pouco razoável para investir numa única palavra, para além disso até a literatura de referência que citei não menciona a problemática particular do -aê-.

Considero que a pergunta fica por responder, deixo esta postagem como um subsídio.

bad_coder
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    Brilhante subsídio! Sobre o Corpus, também consultei a base histórica, e achei por bem adicionar à pergunta um número maior de exemplos. – stafusa Jun 19 '23 at 08:39
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