Mané na aceção de ’indivíduo inepto, bobo’, não é exclusivo do Rio de Janeiro. Segundo o dicionário Houaiss é comum a todo o Brasil e a regiões de Portugal. E é muito antigo, já vem atestado em 1889 no Dicionário de Vocabulos Brazileiros de Henrique Beaurepaire-Rohan (grafia original em todas as citações):
Mané, s. m. individuo inepto, indolente, desleixado, negligente, palerma. Tambem dizem Manécôco e no Amazonas Manembro. || Etym. É apocope do termo Manêma, que tanto em tupi como em guarani, significa frouxo (Montoya) e mofino [desafortunado, covarde] (Voc. Braz.), o que está de accôrdo com a nossa definição. || É syn. De Bocó e Bocório, de que igualmente se usa no mesmo sentido depreciativo. || Obs. Ha o termo homonymo Mané, de que se serve a gente da plebe, como diminutivo de Manoel.
Antenor Nascente, mencionado no dicionário Houaiss, também dá manema, do tupi ma’nema, como origem de mané, mas por via diferente: manema é farinha grossa de mandioca, e por isso de menos préstimo que a fina; daí, segundo ele, a aceção de indivíduo inepto.
Mas o Houaiss diz que outra origem possível é simplesmente o nome Manuel. E há boas razões a favor desta tese. Já em 1839 reinava em certos setores da sociedade brasileira a ideia que os Manuéis eram tolos, como reportado no jornal O Carapuceiro (Pernambuco, 7-6-1839) e depois em O Monitor (Rio de Janeiro, 28-8-1939):
Quem não terá ouvido, mórmente em companhia de Senhoras, aprovar estes, e reprovar aquelles nomes? […]
A respeito dos homens porfião, que os Manueis são tolos, os Joões aparvalhados, os Cazuzas velhaquetes, os Quinquins geniosos, e já ouvi a varias Senhoras afirmarem, que a filhos seus nunca porião o nome de Francisco; por que todos são doudos, e estragados.
[…] hoje as pessoas de bom tom já não baptizão nem Chrismão seus filhos por João, Manoel, Jozé, Pedro […] porém sim por Leoncio, Rodolfo, Leovigildo, Franklim. &c. […] e tal he a mania a este respeito, que em nascendo qual quer menino, seus pais, padrinhos, ou parentes pôe-se logo a indagar, e parafusar hum nome bem extraordinário, e exquisito para lh’o darem no Baptismo;
Também em favor da origem em Manuel temos mais recentemente Heinz Kröll, Eufemismo e Disfemisno no Português Moderno (1984), capítulo III — Defeitos morais e mentais, secção 1. Estupidez e Imbecilidade (p. 39):
É bastante frequente nomes próprios de pessoas passarem a designar o estúpido. Escolhem-se para esse fim, por via de regra, os nomes mais vulgares ou então os nomes mais raros e um tanto ridículos. Assim por exemplo: […] joão, joão-da-horta, lopes, lucas (provavelmente por analogia fonética com louco e maluco), mané, manel, manécoco (Fial[ho de Almeida, Os] Gat[os] V, 250:… como neste País tudo continua a estar nas mãos de dez ou doze manécocos…), mané-jacá, mané-zé, manuel-da-horta […] zé-piegas, zé-quitólis, zé-da-véstia.
A mulher estúpida é chamada amélia, bazilinha, engrácia, maria-ingélica ou roberta.
A estes nomes, dos quais, com significado de imbecil, apenas alguns me são vagamente familiares, posso acrescentar toino, versão popular de António umas gerações atrás. (O pessoal do Priberam deve ser bué da toino para não saber isso.) És mesmo toino significa ’és mesmo parvo, rústico, atrasado’.
Por sua vez Luís da Câmara Cascudo, no seu Dicionário do Folclore Brasileiro, 1954, indica mané como variante de mané gostoso:
Boneco de engonço, com movimentos nas pernas e braços puxados por cordões. Brinquedo infantil. Antigo personagem do bumba-meu-boi. Homem tolo, imbecil, palerma, aparvalhado, sem vontade. É um mané gostoso! O mesmo que mané-coco, mané-besta, mané-de-Sousa, pai-mané. Beaurepaire Rohan (Vocabulário da Língua Brasileira, RJ 1889), fixando mané, diz ser apócope de manêma, significando no tupi-guarani mofino, frouxo, pulsilânime. Ocorre naturalmente a apócope do português “Manuel”, dito popularmente Mané, mané-tolo, mané-bestalhão, manezinho, etc. Beaurepaire Rohan informa que menembro é idêntico ao mané no vale do Amazonas.
Mané na literatura, só consegui encontrar recentemente (é difícil encontrá-los, porque há montes de falsos positivos). Mané gostoso é fácil de encontrar em épocas mais antigas. O autor brasileiro Ariano Suassuna, em Torturas de um Coração (1951), usa-o com o significado corrente de mané:
Vicentão: «O que tem aqui é moreno queimado! / Mas gente que não suporto / É esse tipo delicado e dengoso / O que é que as mulheres veem nesse mané-gostoso»
Benedito: «Mas Marieta, você gostar / Dum mané-gostoso desse!»
Encontramos uma ocorrência mais antiga, com um significado um pouco mais especializado, nos Anais da Câmara dos Deputados [do Brasil] — Vol 7 — p. 218 (1914):
Pois, quando todo mundo sabe que o nosso chamado Poder Legislativo não passa de um Mané gostoso, cujos cordões estão nas mãos do Presidente da Republica;
Mané-coco encontramos já em 1830. Num artigo em O Cruzeiro (Pernambuco, 15-11-1830), um indivíduo primeiro apelidado de “Snr. pateta” e “pedaço d’asno” é depois apelidado de “Mané-Coco”:
Dizem que a Santa Inquisiçaõ era tirana, naõ tinha nada de humana he verdade; mas ao menos não se viaõ tantos sicrilegios como de presente estamos vendo, e proderiaõ ser que o Snr. Mané Coco naõ passasse bem em argoir os actos de Religiaõ de ignominiozos.
Esta outra passagem num artigo do Monitor Campista (Campos, Rio de Janeiro, 9-8-1834) não precisa de explicação:
[…] que pai de familia haverá tão bajoujo, e Mané côco, que deixe sua filha rapariguinha, galante, e abastada ir confessar-se a hum Clerigozinho amoladinho, e gamenho, que póde muito a seu salvo requebrar-se com ella no Confessionario, seduzil-a para cazar, e d’ali entabolar hum namoro talvez indestructivel?
Eu não conhecia nenhum destes manés em Portugal, mas encontrei um Mané-Coco já e 1866 numa história (será que verdadeira?) de Camilo de Castelo Branco (“Uma Epístola de Garrett e o Porto”, em Cavar em Ruinas).
Depois disto tudo, a minha opinião é que a tendência para usar variantes de nomes próprios com sentido pejorativo teve quase de certeza o seu papel no surgimento, ou surgimentos, de mané como ’bobo’. E não tem que haver uma raiz única: o ma’nema tupi e o mané gostoso podem perfeitamente ter ajudado a fixar esse significado de mané
Quanto a mané como um termo amigável para cara, gajo no Rio de Janeiro, aconteceu um fenómeno semelhante na ilha de Santa Catarina, onde mané(zinho) ou mané(zinho) da ilha foi adotado pelos próprios habitantes para se referirem a si mesmos.