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Olá, estou a aprender português. Há muitos dicionários que dizem recordar(-se) e lembrar(-se) são sinónimos, mas recordar não parece usado muito (na língua falada). É uma forma mais formal / literária? Ou há uma diferença subtil entre as formas? Quando preciso dizer recordar em vez de lembrar?

Jan Berkel
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Como dizes, há uma diferença de registo ("recordar" é mais formal). Mas há mais. "Recordar" está mais ligado à memória e portanto "lembrar" nem sempre é substituível:

  1. Pronominalmente, quando significa "ter/trazer à atenção consciente", por oposição à memória (o oposto de alguém se esquecer de alguma coisa no sentido de distração/discuido):

    (1) Lembrei-me à última da hora que tinha comprar pão. (não *recordei-me à última da hora)
    (2) Ninguém o fez porque ninguém se lembrou disso. (=toda a gente se esqueceu)
    (3) Alguém se lembra de alguma coisa que falte?

    Quando é mais uma questão de memória, são substituíveis:

    (4) Não me lembro/me recordo de alguma vez ter dito isso. (ter em memória)
    (5) Dos mais velhos que se recordam/se lembram, para os mais novos que aprendem.

  2. Quando "lembrar" significa "ter a ideia de" (i.e., não como oposto de "esquecer por descuido", mas uma ideia original):

    (6) Ninguém o fez porque ninguém se lembrou disso. (exemplo igual a (3), mas aqui =ninguém teve essa ideia)
    (7) Agora lembrou-se de me vir para aqui chatear-me.
    (8) E nem se lembrou de fazer o que de imediato se impunha, ir visitar um bairro de maioria de cor... (também pode ser interpretado com o significado anterior)

    A expressão não lembra a (=é-lhe impensável) é bastante idiomática e está provavelmente relacionada com este significado, embora o verbo não seja aí usado pronominalmente:

    (9) Isso não lembra nem ao menino Jesus/nem ao diabo/a ninguém.

  3. No uso não pronominal, quando lembrar é algo que se suscita noutras pessoas e tem uma componente de advertência, aviso (significado 3. do Aulete Digital). A regência é "lembrar alguma coisa a alguém" ou "lembrar alguém de alguma coisa", dependendo se o foco está na pessoa ou não. Os exemplos do Aulete são bons:

    (10) Lembrou o empregado de suas obrigações.
    (11) O juiz lembrou ao jogador que na próxima falta seria expulso.

    Frequentemente, não é fácil distinguir este significado do 4. (mencionar (algo) a (alguém), para que não seja esquecido), como nas frases seguintes:

    (12) A FAO não se cansa também de lembrar aos países considerados desenvolvidos que é do seu interesse melhorar as condições alimentares dos mais pobres.
    (13) Só que a FNE lembra que «os compromissos assumidos não podem ser prejudicados por cortes nos orçamentos».
    (14) Na anterior gestão, lembrou, «bastava o despacho do vereador, agora é necessária a aprovação do colectivos de vereadores».

    Nestas frases, "recordar" é menos natural, mas possível. Se substituirmos por "recordar", arriscamos introduzir alguma ambiguidade. Por exemplo, em (14) pode passar a parecer o locutor estaria simplesmente a relembrar factos passados e não chamar o atenção do interlocutor para um facto como parte de algum argumento, embora geralmente o contexto esclareça a ambiguidade.

  4. Relacionado com o ponto anterior, lembrar pode significar sugerir, trazer à memória por sugestão (significado 2. do Aulete Digital):

    (15) O estilo do pintor lembrava o de Van Gogh.
    (16) Essa história lembra uma situação parecida a semana passada.

    Um sinónimo aqui é faz lembrar (ou faz recordar).

Por outro lado, no sentido de "reviver", "recordar" é mais idiomático (mas lembrar também é possível). Isto aplica-se a "recordar alguma coisa", não a "relembrar alguma coisa a alguém"/"relembrar alguém de alguma coisa" ou "relembrar-se de alguma coisa".

(17) Foi esta etapa da vida do avô do actual Presidente da República, que esteve à frente do «Espadarte» em 1916 e do «Hidra» em 1919, que ontem se recordou no Alfeite.
(18) Passava os dias a recordar os tempos idos.

Na frase (17), a substituição por "lembrar" não soa mal, mas em (18) seria ambígua -- "lembrar quem?". Estritamente falando, "recordar" também tem essa ambiguidade, mas "lembrar" é mais usado nessoutro sentido de "mencionar para que não seja esquecido".

Artefacto
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  • Só umas achegas. Para exprimir nostalgia, recordar é mais idiomático que lembrar: "passava os dias a recordar os tempos idos." Se bem se lembra é mais comum que se bem se recorda, mas parece-me que em (9) são substituíveis. Não quererias era ter dois recorda. – Jacinto Oct 21 '15 at 06:41
  • @Jacinto Sim, concordo, embora creia que o teu exemplo soe mal mais por ser ambíguo. Explico melhor na minha resposta. – Artefacto Oct 21 '15 at 09:22
  • .. de me vir para aqui chatear-me tem dois complementos indiretos. Devia ser ou "de me vir chatear" ou "de vir chatear-me". – ANeves Oct 21 '15 at 09:46
  • @ANeves Não tenho a certeza, mas diria que está correta. O primeiro "me" é um pronome de interesse ligado ao verbo "ir", o segundo indica quem está a ser chateado. Um exemplo semelhante: "Ele prometeu-me destruir-me". Sem o primeiro "me" poderia ter prometido a outra pessoa. – Artefacto Oct 21 '15 at 09:50
  • Bom, é verdade que no exemplo com "prometer" os "me"s não têm a mesma função. Mas [func=".+\+<DAT"]{2} no CETEMPúblico tem bons exemplos (entre muitos "deixe-me" mal anotados), como "A admiração de Shelley por Godwin é tanta que, em 1814, escreve-lhe pedindo-lhe para o visitar." – Artefacto Oct 21 '15 at 10:02
  • Ah, percebo!... não me soa bem "me vir chatear-me", mas vejo que é uma possibilidade. Tem dois verbos, e gramaticalmente cada um dos verbos pode ter o seu próprio objeto indireto (portanto, dois "me"). Acho que são bons exemplos tanto "escreve-lhe pedindo-lhe" como "prometeu-me destrui-lo". – ANeves Oct 21 '15 at 10:07
  • @Artefacto Não percebi o teu comentário. Na tua resposta parece-me que dizes que (18) está bem, mas se substituíssemos recordar por lembrar ficaria ambíguo (passar os dias a lembrar faz logo pensar em passar os dias a chatear-me com alguma coisa?) Mas eu só sugeri a versão com recordar. – Jacinto Oct 21 '15 at 10:31
  • @Jacinto A ideia que queria dar era que que substituir "recordar" por "lembrar" em (18) nao soa tão bom porque se presta a essa ambiguidade, ao contrário de (17). Mudei (17) para o significado de "recordar" ser o mesmo ("reviver"). – Artefacto Oct 21 '15 at 12:21
  • obrigado pelas vossas explicações: quando fiz um pesquisa Google a única coisa que encontrei foi uma citação: "..Seu erro fundamental é lembrar em vez de recordar. Há uma diferença entre lembrar e recordar; recordar é reviver, lembrar é apenas saber. O que é recordado fica, o que é lembrado é também esquecido" (Fernando Sabino, O Encontro Marcado) – Jan Berkel Oct 22 '15 at 14:15
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Uma resposta na pergunta citada pelo Earthliŋ mostra uma diferença simples e bem objetiva:

Recall cannot be used in the sense of not forget to do

Recordar não é usado no sentido de não esquecer

Recordar também me passa a impressão de algo de maior intensidade subjetiva que simplesmente lembrar. Por sinal, a etimologia da palavra remete a coração (em latim, cordis).

bfavaretto
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    Embora curta a resposta aqui parece ser a mais precisa. Lembrar é muito usada no dia-a-dia por conta das situações cotidianas "lembrei que tenho hora no dentista", "lembrei que hoje é o última dia para me inscrever". Recordar é mais usada quando uma pessoa fala de fatos do passado – jean Oct 21 '15 at 15:56
  • Não creio que seja nada precisa. A resposta sugere (mas nem sequer o diz explicitamente) que "recall" = "recordar". Mas isto não é verdade. Uma pessoa pode recordar alguém de algo, mas não podemos "recall someone". "Recordar" tem alguns (mas não todos) os signifiados de "remind". Para mais, "Recordar não é usado no sentido de não esquecer" também não é uma boa tradução. A correcta seria "Recordar não é usado no sentido de não se esquecer". Pelo menos em Portugal "esquecer algo" <> "esquecer-se de algo", ou melhor, "esquecer-se de algo" pode significar "esquecer algo", mas não vice-versa. – Artefacto Oct 22 '15 at 12:02
  • Além disso, resposta omite outros significados que "lembrar" tem que "recordar" não pode tomar. "Recordar não é usado no sentido de não se esquecer" é apenas o ponto 1. da minha resposta – Artefacto Oct 22 '15 at 12:03
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"lembrar" é o verbo que se usa na maioria das vezes e é um verbo bitransitivo.

  • Eu (me) lembrei de trazer minha câmera.
  • Ela não deve (se) lembrar mais que você foi grosseiro naquele dia.
  • Eu (me) lembro que não existia o metrô naquela época.
  • Eu não consegui (me) lembrar da fórmula para resolver a equação.
  • Ela tem Alzheimer e já não (se) lembra de mais nada.

"recordar" refere-se a lembrar(-se) de fatos e ocorrências antigas. Você não recorda a fórmula, não recorda de trazer a câmera. Mas recorda que...

  • Eu me recordo que não existia o metrô naquela época. (correto, embora menos usado que "lembrar")
  • Ela tem Alzheimer e já não se recorda de mais nada. (correto)
  • Eu não consegui recordar a fórmula.... (gramaticalmente correto mas, do ponto de vista semântico, soa muito estranho)
  • "recordar é viver" (uma expressão muito usada e não podemos usar "lembrar" nesse caso.)
  • "Ele recuperou os sentidos mas não se recorda de nada." (correto e ligeiramente mais acadêmico do que "lembrar")
Centaurus
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