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Uma das diferenças mais marcantes entre o português do Brasil e de Portugal atuais é o uso em Portugal de a + infinitivo em vez do gerúndio do Brasil:

Ele está a dormir versus ele está dormindo.

Andaram a espalhar boatos versus andaram espalhando boatos

Foi então com alguma surpresa que me deparei com a “construção lusitana” no Dom Casmurro (1899) de Machado de Assis; alguns exemplos (ênfase minha)

Não me recorda um só dos argumentos que empreguei, nem talvez interesse conhecê-los, agora que o século está a expirar;

[…] mas Capitu, antes que o pai acabasse de entrar, fez um gesto inesperado, pousou a boca na minha boca, e deu de vontade o que estava a recusar à força

Como estivesse a espiar os peraltas da vizinhança, vi um destes que conversava com a minha amiga ao pé da janela.

Chegara ao último degrau, e uma idéia me entrou no cérebro, como se estivesse a esperar por mim, entre as grades da cancela.

Os ratos continuam a infestar-me a casa, que é o diabo

Poder-se-ia pensar que isto fosse coisa do português antigo, que entretanto tivesse desaparecido no Brasil. Mas a resposta do Artefacto a esta pergunta sugere que o estar + gerúndio é a construção mais antiga no português, e que estar + a + infinitivo, mesmo em Portugal, só em finais do século XIX começou a dar os primeiros passos. As minhas leituras de autores portugueses do século XIX dão-me também essa impressão. Podemos também excluir outra explicação: aqueles exemplos vêm todos da voz, ou pena, do Bento, brasileiro filho de brasileiros; não é portanto um português acabado de chegar ao Brasil.

Então a pergunta é: quão significativo foi o uso do a + infinitivo em vez do gerúndio no Brasil? Quando é que começou e até quando durou? Será que o Machado de Assis (1839-1908, Wikipédia) foi uma exceção? Se ele não foi exceção, põe-se uma outra questão bem mais complicada (e que se ninguém conseguir responder, eu já fico satisfeito com a resposta à questão anterior), que é: donde é que isto veio? Será que o a + infinitivo já era usado em vez do gerúndio há mais tempo, em Portugal e no Brasil, do que o artigo citado pelo Artefacto sugere? Se não, como é que surge em Portugal e no Brasil mais ou menos na mesma altura?

Jacinto
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  • «aqueles exemplos vêm»; 2. «com a resposta à questão anterior»; e 3. a última frase devia acabar em ponto de interrogação, e não em ponto final.
  • – ANeves Jan 26 '17 at 12:50
  • Minha experiência completamente anedotal e parcial de um brasileiro ainda no princípio da vida: a formação com o gerúndio é recente o suficiente para que o termo gerundismo exista. Em especial, nos anos 90 e 2000, com a popularização dos serviços de call center, o assunto foi discutido o suficiente para tornar-se parte da cultura popular brasileira. – Ramon Melo Jan 26 '17 at 13:26
  • @RamonMelo O estar/andar + gerúndio já existia, em Portugal e no Brasil, nos séculos XVIII e XIX. Vê a resposta do Artefacto na pergunta linkada. Talvez gerundismo se refira a outros usos do gerúndio (não estar/andar +...). Pelo contrário, pela informação que tenho, estar/andar + a + infinitivo, é que é relativamente recente, século e picos... – Jacinto Jan 26 '17 at 13:32
  • Sem dúvida já existia. Só quis demonstrar que a popularização deste uso é suficientemente recente para causar o estranhamento. O termo gerundismo, infelizmente, não tem nenhuma definição mais elaborada que "o uso excessivo do gerúndio" (que eu conheça, ao menos). O próprio conceito de "excessivo", neste caso, é mais individual do que objetivo. – Ramon Melo Jan 26 '17 at 13:36
  • @Ramon Mas no confronto estar + gerúndio versus estar + a + infinitivo (e é só disso que a pergunta trata), ao que parece o gerúndio foi a única forma usada no português antigo. – Jacinto Jan 26 '17 at 13:48
  • Mas o gerundismo costuma se aplicar a esta construção "estar + gerúndio" mesmo, dá uma olhada na charge para ver a ênfase que o artista dá. Estou tentando dizer que o uso da construção "estar + a + infinitivo", em algum momento da história, foi comum no Brasil, o que parece me sugerir (mas posso estar errado) que Machado de Assis não foi uma exceção. Meu conhecimento sobre o assunto termina por aí, infelizmente. – Ramon Melo Jan 26 '17 at 14:00
  • Jacinto, não duvido que alguns brasileiros ainda usem o "estar + infinitivo" em algumas situações formais e sejam perfeitamente compreendidos por todos. Eu mesmo poderia talvez algum dia ter dito alguma coisa do tipo "vocês estão a brincar com coisa séria" e nem tenha percebido. Eu acredito que o pt-BR foi se distanciando do pt-PT na primeira metade do século XX e que na época de Machado nossos falares ainda eram bem semelhantes. – Centaurus Jan 26 '17 at 16:53
  • @Centaurus Mas neste aspeto particular eu não esperaria uma semelhança entre Portugal e Brasil no tempo do Machado de Assis. Uma coisa é uma construção que já vem do sXV ou XVI e que naturalmente existia nos dois países. Mas segundo a resposta do Artefacto, o a + infinitivo no lugar de gerúndio é uma coisa recente. Portanto é curioso que aparecesse ao mesmo tempo nos dois países. – Jacinto Jan 26 '17 at 17:19
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    @Ramon Descobri isto na Wikipédia: o gerundismo não é a substituição de a + infinitivo por gerúndio, mas a substituição do presente, futuro simples, etc. pelo gerúndio, e.g. amanhã estou indo à praia em vez de amanhã vou à praia e coisas assim. – Jacinto Jan 26 '17 at 17:23
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    @Jacinto O "gerundismo", considerado uma praga pela gramática prescritiva, é o "estarei lhe telefonando mais tarde", "estarei dando o seu recado", "estaremos encontrando você amanhã". – Centaurus Jan 26 '17 at 18:34
  • @Jacinto Não deve ter aparecido ao mesmo tempo nos dois países. Alguém adotou o falar de alguém. Acredito que no século XIX a elite brasileira ainda adotasse com muita facilidade os modismos portugueses. – Centaurus Jan 26 '17 at 18:38
  • @Centaurus Não sei se a + infinitivo era modismo nessa altura em Portugal. O gerúndio é que eu encontro na literatura dessa época. – Jacinto Jan 26 '17 at 18:57
  • @Jacinto Não estou a afirmar nada. São suposições. – Centaurus Jan 26 '17 at 19:30
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    Tem muito "gerundismo" em português que vem do inglês "ao viés" da tradução mal feita. O pessoal não sabe traduzir e sai cada uma......Mas, me digan, os portugueses não sempre usaram "estar + a + infinitivo"? Pessoalmente, na minha experiência em Portugal, só tenho ouvido na conversa cotidiana, essa forma. Nunca ouvi um português/guesa dizer: "O qué que estas fazendo?" – Lambie Feb 15 '18 at 17:57
  • @Lambie, em autores portugueses do sXIX o que encontras mais frequentemente é "estar + gerúndio", como falam os brasileiros hoje em dia. Essa construção sobreviveu até há pouco tempo (talvez sobreviva ainda) no Alentejo, Algarve e Açores. Se "estar + a + infinitivo" também já vem do português antigo é que eu não sei. No Eça de Queiroz, sXIX, já se encontra. – Jacinto Mar 19 '18 at 18:57
  • Obrigada pela informação. – Lambie Mar 20 '18 at 15:45
  • @Lambie, olha, ainda anteontem ouvi um português a usar o "estar + gerúndio"--"Está chovendo". Pelo sotaque, era alentejano, do sul, onde esta construção sobreviveu até mais recentemente. Agora não sei se ele fala habitualmente assim ou se estava na brincadeira a recuperar modos de falar que ele ouviu aos pais ou avós dele. – Jacinto Apr 10 '18 at 06:49
  • @Jacinto Então, é mais provável ouvir o estar + gérundio em Portugal do que ouvir à + verbo no infinitivo no Brasil. E nem um ou o outro é o que se qualificaria de gerundismo. (Tenho certeza que não estamos à discutir os phrasal verbs. [humor]) – Lambie Apr 10 '18 at 15:25