4

Sou brasileiro e já fui muito criticado por familiares por usar preposição a + infinitivo como substituto do gerúndio, me dizendo que a + infinitivo tem sentido de futuro; ex.: “a mulher a falar foi roubada” seria equivalente a “a mulher que estava para falar foi roubada” ou “a mulher que ia falar foi roubada”.

Dou outros quatro exemplos para esclarecer (ou “[…] quatro exemplos a esclarecer”):

  1. “Pessoas a falar sempre há, mas nunca falando” = “pessoas para falar sempre há, mas nunca falando”;
  2. “O copo a cair no chão foi resgatado pelo garçom” = “o copo que estava para cair no chão foi resgatado pelo garçom” ou “o copo que ia cair no chão foi resgatado pelo garçom”;
  3. “Ele está a fazer há três anos” = “ele está para fazer há três anos” ou “ele 'fará' há três anos”;
  4. “Senhor, eu estou a fazer pra você. Entrego amanhã” =, ambos no sentido de obrigação, “senhor, eu farei pra você. Entrego amanhã”, ou melhor “eu hei de fazer pra você. Entrego amanhã”.

Então pergunto: eu já vi muitíssimo este uso, mas ele é comum? Em Portugal teria a mesma interpretação, já que lá é comuníssimo usar a + infinitivo substituindo o gerúndio?

Schilive
  • 2,783
  • 2
  • 10
  • 24

1 Answers1

3

Sim, a + infinitivo pode indicar um evento futuro, mas em Portugal nenhum dos teus exemplos teria a interpretação que tu lhe dás. Cito o Dicionário da Academia das Ciências de Lisboa (2001), o único foi onde encontrei isto tratado. O ponto 4 é o mais diretamente relevante (grafia anterior ao AO90):

a⁵ [ɐ] prep. […] B Funções gramaticais […] III Em relação com um nome ou pronome, antecedendo um infinitivo, indica: 1. Acção prolongada. Encontrei-o a falar com um amigo. Vi um homem a ler o jornal. 2. Valor enfático. Foi ele a saudar o homenageado. 3. Dever ou conveniência. Este é um livro a ler atentamente. 4. Tempo futuro. «Em determinadas pessoas [os sonhos] representam fenómenos ainda por estudar […], sucedidos ou a suceder no domínio da natureza.» (AQUILINO, Batalha, p. 107)

Mesmo no ponto 3 pode haver uma ideia de futuro: o que convém ou se deve fazer refere-se normalmente a ações futuras. Na verdade há uma certa continuidade entre os pontos 3 e 4: do que convém ou se deve fazer, passando pelo que se quer fazer, pelo que está decidido ou programado fazer-se, até ao simples futuro:

Este é um livro a ler atentamente
Informe-se dos cuidados a ter no manuseamento deste produto
Fiz uma lista dos lugares a visitar em Londres
Já afixei os cartazes dos filmes a exibir na próxima semana
O último a sair que apague a luz

Agora, por vezes, se isto indica futuro ou passado depende do contexto: por exemplo, a sair é no futuro em o último a sair apague a luz, mas no passado em o último a sair foi o João.

Agora, neste uso, pelo menos em Portugal, o a + infinitivo, vem, como diz o Dicionário, “em relação com um nome ou pronome” ― livro a ler, filmes a exibir etc. ― não com um verbo auxiliar; por isso não se confunde com a perífrase verbal estar a + infinitivo. Em Portugal, o estar a fazer dos teus exemplos 3 e 4 seria sempre interpretado como ’estar fazendo’ (perguntavam-te logo era, fazer o quê?):

3. Ele está a fazer há três anos = ele está fazendo há três anos; exemplo: ele está a fazer (está fazendo) o curso há 6 anos, e ainda está longe de acabar.

Para a interpretação que pretendes, em Portugal seria: ele está para fazer isso há três anos (mas nunca mais começa). Do mesmo modo:

4. Estou a fazer para você = estou fazendo para você

Esta perífrase verbal tem sentido de futuro é em coisas do tipo, Ana está a fazer anos/a fazer 50 anos ou está a fazer dois meses que ele chegou, em que está a fazer significa ’vai fazer (nos próximos dias)’. Mas isto é mesmo só com períodos de tempo: estou a fazer o jantar significa apenas ’estou fazendo o jantar’, nunca ’vou fazer’. Pelo que vi na net esta construção é muito mais comum em Portugal do que no Brasil. Eu até pensei que no Brasil se dissesse está fazendo X anos/meses com o mesmo significado, mas encontro na net muitas coisas do tipo está fazendo 50 anos hoje; em Portugal diríamos faz 50 anos hoje, não está a fazer.

Também dizemos estou a chegar quando ainda estamos a uns minutos de distância; o filme está a começar quando já apareceu o logotipo do estúdio, mas antes das primeiras cenas; ou o azeite está a acabar quando ainda há um decilitro na garrafa. Mas creio que nestas situações no Brasil também se dirá estou chegando, está começando, está acabando.

Os teus exemplos 1 e 2 em Portugal soariam estranhos:

1. Pessoas a falar sempre há, mas nunca falando

Este geraria perplexidade, porque pessoas a falar seria imediatamente interpretado como ’pessoas falando’ (ponto 1 do Dicionário). A noção de futuro é possível, mas em coisas como, de acordo com o programa, as pessoas a falar a seguir são a Ana e o João.

2. O copo a cair no chão foi resgatado pelo garçom

Aqui interpretaríamos como ’o copo em queda’ (novamente, ponto 1 do Dicionário). Para a tua interpretação diríamos, o copo quase/prestes a cair ou em risco de cair. Mas há situações algo parecidas em que a interpretação é de futuro. Depende do contexto. Por exemplo:

Os defensores do património arquitetónico querem salvar a casa a demolir (que alguém pretende, decidiu, demolir). A casa a demolir é agora a casa a proteger (que se quer proteger)

Jacinto
  • 44,937
  • 17
  • 141
  • 257
  • Será que você teria a gentileza de rever as frases na pergunta? Estou de acordo com a sua explicação mas não com as frases acima (na pergunta). – Lambie Feb 27 '22 at 17:36
  • @Lambie, feito. Na verdade eu logo que postei fiquei vai não vai para comentar os exemplos. O teu pedido foi o incentivozinho que faltava. – Jacinto Feb 27 '22 at 20:33
  • 2
    Re: "Mas creio que nestas situações no Brasil também se dirá estou chegando, está começando, está acabando." Confirmo. – stafusa Feb 28 '22 at 16:26
  • Jacinto, muito obrigado pela resposta. Eu achei que a pergunta fosse não ter resposta até o fim do mundo. – Schilive Feb 28 '22 at 19:11
  • @Schilive, pois, eu já conhecia a pergunta, mas creio que só agora é que me lembrei de consultar o Dicionário da Academia. O Houaiss não cobre estes usos. – Jacinto Mar 02 '22 at 11:12